terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Convicção do bispo comove quem o cerca

Jornal A Tarde, 16/12/2007.

Convicção do bispo comove quem o cerca

Há 20 dias sem ingerir alimentos, dom Luiz Flávio Cappio diz que está preparado para ir até o fim nesta luta. Tudo o que ele deseja é que o governo federal abra um canal de diálogo e venha debater com toda a sociedade sobre o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco.
Não sem antes retirar as tropas do Exército dos eixos Leste e Norte, onde as obras já estão paralisadas, desde a sexta-feira, por força de uma liminar concedida pelo Tribunal Regional Federal.

O empenho pela causa não surgiu do nada.

Nascido no dia 4 de outubro, diade São Francisco de Assis, dom Luiz mantém uma ligação espiritual com o santo, amigo da natureza e dos animais, cujos preceitos religiosos de generosidade e desapego material norteiam a ordem franciscana, à qual se afiliou.
O mesmo São Francisco é padroeiro do Velho Chico – rio de quase três milquilômetros de comprimento, que banha cinco Estados brasileiros.
Nascido e criado em Guaratinguetá, São Paulo, filho de uma família católica rica e tradicional, desde adolescente dom Luiz já era visto pelos irmãos como um jovem diferente da maioria das pessoas de sua idade. “Claro que ele tinha suas diversões, mas de uma maneira muito mais comedida”,observa sua irmã, Rita Maria Cappio.
Estudioso, tinha pretensões de ser engenheiro, profissão prontamente apoiada pelo pai. Desde novo, porém, já freqüentava ativamente a Igreja Católica e dava indícios de seguir o caminho religioso.
O amigo de infância Valdomiro Antônio Rizzato, 59 anos, lembra de quando tinham cerca de 7 anos e a turma gostava de brincar de se casar com as garotas. “Só que ele jamais se casou. Era sempre quem celebrava os casamentos. Uma coisa fantástica”, conta, rindo.
Miro, como é conhecido,conviveu de criança a adolescente com dom Luiz, na mesma vizinhança, em Guaratinguetá. Juntos, fizeram a primeira comunhão. “Praticamente era ele quem dava o curso.
Nasceu com este dom, só esperou o momento certo para ser padre”.
Foi aos 18 anos, após concluir o ensino médio, que dom Luiz decidiu entrar para o seminário. A notícia foi uma surpresa em casa, mas logo foi bem aceita. Em 1971, ordenouse padre. Dois anos depois, decidiu despojar-se detudo o que tinha e abandonar São Paulo, em um trem rumo à Bahia.
Destituído de posses, chegou a Montes Claros, de onde seguiu mil quilômetros a pé até Bom Jesus da Lapa. De lá, seguiu mais de 600 quilômetros até a cidade de Barra, pregando nas comunidades ribeirinhas.“Temos muita satisfação por nosso irmão ter tomado o caminho da religiosidade. Principalmente, não se escondendo debaixo de um hábito, nem dentro de uma igreja, mas colocando sua vida em favor dos menos favorecidos.
Aqueles que não têm voz e aqueles que não têm vez, hoje, estão tendo, graças a ele”, diz o irmão mais velho, João Franco Cappio.
Para o amigo de 35 anos, Reni Waltrick, 58, a vocação foi escolhida por um ideal, que o serve de alimento constante. “Vejo uma pessoa de muita fé,despojada de tudo aquilo que pode prender alguém”.

ATITUDE – Filho de família rica, que morava em uma casa grande com pomar,dom Luiz abria a porta para a molecada do bairro roubar frutas. Miro, de origem pobre, diz que nunca existiu preconceito entre eles. “Toda vida ele emocionou a gente pelas atitudes. Para mim, é um homem santo”.
Em 4 de outubro de 1992, dom Luiz iniciou uma peregrinação ao longo do Rio São Francisco, junto com o sociólogo e amigo Adriano Martins. Saíram d anascente de barco, indo às diversas comunidades ribeirinhas, chegando à foz no mesmo dia do ano seguinte. Com eles, levaram uma imagem de SãoFrancisco, a mesma que hoje está na capela de Sobradinho. Aonde chegavam,apresentavam-na, dizendo que era o santo padroeiro do rio quem estava visitando o lugar.“Usamos a simbologia para falar a linguagem do povo”, revela o frei.
Nessa época o bispo conheceu de perto as dificuldades enfrentadas pelos nordestinos que dependem do rio para viver, como a falta de água para consumo, a degradação ambiental e a baixa qualidade de vida, mesmo diantede tanta riqueza natural. Como resultado da jornada, ele e Martins publicaram, junto com o escritor Renato Kishner, o livro Rio São Francisco – Uma caminhada entre vida e morte, pela Editora Vozes. Estava legitimada a competência dele para discutir os problemas do rio e da terra.“Hoje querem discutir com ele, mas não sabem o que estão falando.
Falam de ouvir falar, são os grandes teóricos. Vai ver a prática. Dom Luiztem teoria e tem prática, tem conhecimento profundo. Então, quando ele toma uma atitude dessa (o jejum), acham radical. É uma atitude radical, sim; mas por que? Porque os ignorantes que nos governam não sabem a realidade”, provoca João Franco.
E o bispo, teme o que está por vir? “Quem parte para a guerra está preparado para lutar”, responde.

Rio desvalido Editorial Jornal A Tarde

Oprojeto de transposição do Rio São Francisco é deveras polêmico – tanto assim que está a provocar jejum rigoroso do bispo de Barra, dom LuizFlávio Cappio. Há nele vários aspectos, facetas e ângulos às vezes contraditórios, e isso requer novas ponderações, no interesse de justos arrazoados. Não é possível o rio permanecer na inércia dos governantes.
O rio é hoje uma sombra do seu passado de marco civilizatório. Abandonado há tantos anos pelos governantes, como se fora uma força inexaurível da natureza, capaz de resistir por si só às agressões ambientais do homem, oVelho Chico sofre a asfixia do assoreamento que lhe reduz a vazão atravésde políticas conservacionistas do status quo.
Mesmo em estado de anemia, ainda lhe restam forças para socorrer as populações ribeirinhas, que dele tiram a sua frugal dieta.
Ainda se mantém no pedestal de patrimônio público. Por tudo isso merece cuidados urgentes de quem se tornou arrimo de milhares de famílias, das nascentes à foz, ao longo dos cinco Estados por ele banhados, necessitandode investimentos.
Antes de qualquer obra de conseqüências ainda incertas, passíveis,portanto, de agravar lhe os padecimentos, o São Francisco necessita de parte dos investimentos previstos no projeto de transposição para deixar o leito de enfermo. Depois de obter alta, então se pensaria com maior certeza no empreendimento de desviar parte de suas águas para irrigar o semi-árido nordestino de outros Estados.
É questão de bom senso.
É questão de sobrevida. Não se admite que o futurodo rio e seus dependentes humanos continue pendente da palavra final desse ou daquele antagonista.O radicalismo de posições obscurece a razão e esmaga os sentimentos. Não éapenas o bispo que jejua e reza, mas também as comunidades. Sofre apopulação, sofre o padre, enquanto um rio outrora símbolo de unidade nacional há de fazer também a sua prece silenciosa em benefício de misericórdia de tantos anos de abandono.
Certamente não será pelo aferrado apego a posições antagônicas, em franca hostilidade e insensíveis a possíveis ações de arbitramento, que se encontrará solução adequada. É preciso ceder – e não se pede cessão de uma ou de outra parte, senão um desarme de espíritos exaltados na refrega.
Para que o rio possa voltar à sua plenitude, contribuindo com o desenvolvimento ambiental, econômico e social.
Grupo organiza a logística da greve de fome
Uma greve de fome não se faz sozinho. Pelo menos, não uma que ganhe contornos crescentes de visibilidade nacional, como a de dom Luiz Cappio.
A prova disso é o apoio, também logístico, que ele tem recebido dos representantes de cerca de dez entidades ligadas a movimentos sociais. São pessoas que estão na periferia dos holofotes, mas sem as quais as luzes não estariam acesas.
Acampadas em barracas de lona em torno da Capela do São Francisco ou alojados no Centro Comunitário de Sobradinho, elas cuidam de toda estrutura que cerca o ato de mobilização.
O grupo se divide em seis equipes: segurança, infra-estrutura, limpeza,comunicação, saúde e formação.
São realizadas reuniões diárias, que avaliam o trabalho e planejam o dia seguinte.
Participam integrantes da Via Campesina, do Movimento dos Atingidos porBarragens (MAB), do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), doMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), da Comissão Pastoralda Terra (CPT), da Comissão Pastoral da Pesca (CPP), entre outros.
O desafio de quem lida diretamente com o frei é aliar o apoio à causa,representada em uma greve de fome, ao cuidado para que ele se mantenha vivo e sadio. Por conta disso, tudo é muito calculado e organizado de maneira a poupar a disposição física do bispo. Há horário para descanso, para entrevistas e para receber as visitas. “A gente não quer a morte dele, mas também respeita a decisão que ele tomou. Vivemos esse dilema”,declara o sociólogo Ruben Siqueira, coordenador da articulação popular SãoFrancisco Vivo.

PREOCUPAÇÃO – “Estamos todos numa tensão infinita, preocupados com a saúdede dom Luiz, ao passo que a gente está aqui em solidariedade a esse gesto”, observa a articuladora popular em defesa do São Francisco pela CPP, Auzenir Thomás. É ela a responsável por levar, a cada 15 minutos,copos com água ou soro caseiro para ele beber.
Amigo e companheiro de vocação, padre Paulo Cezar Moreira concorda: “Ojejum é uma missão de fé. Por esse gesto, ele está conseguindo despertar no povo o interesse por uma luta que é de todos nós”, avalia o religioso.
Baiano de Itamaraju e há seis anos no Estado do Mato Grosso, padre Paulo está sempre por perto de dom Luiz e atua de modo a garantir a segurança do bispo, diante da multidão formada ao seu redor, em determinadas ocasiões.
É também quem faz companhia ao frei em suas caminhadas matinais, sempre por volta das 5 horas.
ALIMENTOS – O pessoal de apoio costuma se revezar para fazer as refeições no centro comunitário da cidade. No entorno da Capela do São Francisco é recomendado não circular com alimentos, em solidariedade ao gesto dobispo.
Além disso, também para evitar boatos sobre a veracidade do jejum de domLuiz Cappio.
Chegou a ser publicada notícia, em uma revista de circulação nacional, deque o bispo estaria comendo melancias às escondidas, o que é prontamente negado pela assessoria.“Dom Luiz é uma das pessoas mais interessantes que eu já vi na vida.
Complexa e de uma profundidade que ultrapassa o primeiro olhar ou mesmo mais tempo de convivência. É uma pessoa muito convicta, de uma fé profundaem Deus e faz disso um total entrega aos outros”, conta Ruben Siqueira.
Quanto à possibilidade de toda a situação não ser resolvida em tempo hábil que garanta a saúde plena do frei, Ruben revela, adiantando o planejamento dos que acompanham a greve de fome do religioso: “No momento em que ele não responder mais por si, nossa obrigação será salvar a vida dele”. ( L.T.)

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