quinta-feira, 20 de março de 2008

Represa de Sobradinho: essa grande desconhecida

O rio São Francisco nasce na serra da Canastra em Minas Gerais, estado responsável pela formação de cerca de 70% de suas águas. Corre em uma bacia hidrográfica com área aproximada de 640.000 km² e possui vazão média de cerca de 2.850 m³/s. O rio tem cerca de 2.800 km de extensão - entre o seu nascedouro, na Serra da Canastra (MG), e a sua foz, no pontal do Peba (AL) - e sua bacia é subdividida em Alto São Francisco (da Serra da Canastra até Pirapora), Médio (de Pirapora até Remanso), Sub-médio (de Remanso até Paulo Afonso) e Baixo (de Paulo Afonso até o Oceano Atlântico).

Ela é caracterizada por períodos de abundância de chuvas entremeados por períodos de secas sucessivas e se estima uma população residente de cerca de 14 milhões de pessoas.

A região do Alto São Francisco é a principal responsável pela formação das enchentes no rio. Este fato é explicado pelas características edáficas e pluviométricas dessa região – solos sedimentares e regularidade nas precipitações pluviométricas – características estas contrastadas com a vasta área de clima semi-árido no restante de sua bacia - principalmente em boa parte da região do Médio e em todo Sub-médio São Francisco - onde a geologia é cristalina e o clima semi-árido, ou seja, chove pouco e as chuvas são mal distribuídas no tempo e no espaço.

O período chuvoso do Alto São Francisco ocorre entre os meses de novembro e abril, intervalo este que não costuma coincidir com o período das águas das outras regiões, principalmente as de clima semi-árido, onde estão localizadas as hidrelétricas da Chesf. Esse fato vinha resultando, até pouco tempo atrás, em deficiências volumétricas significativas no rio, quando da ocorrência de secas prolongadas com prejuízo para o setor elétrico. Em decorrência disso, a Chesf foi obrigada a construir a represa de Sobradinho, no Médio São Francisco, com capacidade de 34 bilhões de m³, (equivalente a cerca de 14 vezes o volume da baia da Guanabara), com o objetivo de acumular as águas provenientes de sua região alta, para, em seguida, assegurar, em patamares satisfatórios, o funcionamento do sistema gerador de energia sob sua responsabilidade. A idéia era fazer com que o volume acumulado nessa represa fosse sendo liberado aos poucos, de forma equilibrada, regularizando a vazão do rio e garantindo a geração de energia no complexo de Paulo Afonso e em Xingó, hidrelétricas localizadas na parte sub-média de sua bacia. Essa medida veio proporcionar ao rio São Francisco, uma vazão regularizada de cerca de 2.060 m³/s no trecho compreendido entre Sobradinho e o seu delta, principalmente no período de maio a outubro, ocasião na qual o rio costuma apresentar vazões reduzidas, conseqüência direta de um período com chuvas irregulares e de baixa contribuição volumétrica de seus tributários (atualmente a vazão regularizada na foz é de 1.850 m³/s).

Não fosse a construção dessa represa, seria muito difícil o equacionamento dos problemas de geração de energia no Nordeste. Para se ter uma idéia dessa problemática, em outubro de 1955 – ano considerado seco - o rio São Francisco registrou a sua menor vazão de 595 m³/s, em Juazeiro/Petrolina, tendo, por outro lado, registrado enchentes monumentais, como aquela ocorrida em 1979, na qual atingiu uma vazão de cerca de 18.000 m³/s, causando o vertimento de Sobradinho, fato que assustou boa parte da população ali residente.

Ao se analisar o regime hidrológico da represa de Sobradinho desde a época de sua inauguração, principalmente no tocante à sua acumulação volumétrica (volumes máximos e mínimos anuais), pode-se constatar que, no período compreendido entre 1978 e 1986, os anos foram hidrologicamente satisfatórios em termos de precipitações, tendo havido acumulações significativas e, em vários deles, a represa veio a sangrar. Igual característica foi observada nos períodos subseqüentes de 1990 a 1994; de 1997 a 1998 e de 2004 a 2007.

Períodos críticos de secas também são recorrentes na represa de Sobradinho. Eles aconteceram de forma marcante entre 1987 e 1989, entre 1995 e 1996 e entre 1999 e 2003. Em tais casos, a represa acumulou apenas metade de sua capacidade útil, tendo chegado, em 2001, a atingir apenas 5% dessa capacidade. Este foi considerado o ano mais seco de sua história, tendo resultado nos racionamentos e na pior crise energética vivenciada até então. Tudo indica que o ano de 2008, dadas as características climáticas que estão em curso, também será seco.

Ao se analisar globalmente o comportamento volumétrico de Sobradinho, considerando principalmente os períodos favoráveis e os desfavoráveis da pluviometria de sua bacia hidrográfica, chega-se à conclusão de que a represa enche em 40% dos casos, ou seja, em 10 anos ela atinge a cota de sangramento em apenas 4.

No momento atual o que preocupa é que estamos no limiar do mês de março, período no qual a represa de Sobradinho deveria estar com a sua afluência volumétrica (volumes que chegam na represa) em estado crescente, e o que se observa é um quadro inverso do esperado: a sua afluência encontra-se em estado decrescente. No portal da Chesf pode-se observar esse fato com muita clareza. No dia 22 de fevereiro, por exemplo, a afluência da represa era de 3.170 m³/s. No dia 27 havia caído para 2.160 m³/s, numa diminuição de cerca de 200 m³/s a cada dia. Este fato sugere uma falta de entendimento entre os responsáveis pela represa de Três Marias (Furnas) e os responsáveis por Sobradinho (Chesf). Por razões que desconhecemos, os volumes das precipitações ocorridas no sul de Minas nas últimas semanas estão sendo retidos em Três Marias. A falta de liberação desses volumes em direção a Sobradinho tem causado a diminuição de afluência nesta represa. Aqui cabe uma observação: pelo fato de já estarmos nos aproximando de abril – mês no qual é encerrado o período chuvoso do Alto São Francisco – e a represa de Sobradinho não ter acumulado percentuais volumétricos significativos (no dia 28 de fevereiro a represa registrava apenas cerca de 37,9% de sua capacidade), impõe-se um gerenciamento mais cuidadoso desses volumes até o término de outubro (final do período seco da região), sob pena de se colocar em risco não só a geração de energia, mas todos os investimentos realizados em sua bacia.

Esse fato acendeu uma luz de alerta na Chesf, que agiu com rapidez para minimizar as possibilidades de exaustão que poderiam existir em Sobradinho, caso nada fosse feito a respeito. A companhia conseguiu autorização da ANA para liberar da represa, para todo o Sub-médio e o Baixo São Francisco, cerca 1.100 m³/s. Esse volume defluente (volumes que saem da represa) está possibilitando uma recuperação volumétrica muito lenta, por tratar-se de um valor menor do que aquele registrado em sua afluência. A multiplicidade de usos das águas do rio São Francisco com esses volumes tem ocasionado grandes transtornos para a população residente na bacia, principalmente àquela que sobrevive às custas do rio.

A piscicultura, por exemplo, tem sido seriamente afetada. A retenção de sedimentos no interior das represas geradoras de energia tem interferido sobremaneira na turbidez de suas águas, confundindo a fisiologia dos peixes e abortando suas desovas. A redução da temperatura das águas é outro fator preocupante, principalmente nos locais mais profundos das represas, o que tem trazido sérios transtornos na reprodução e no desenvolvimento de algumas espécies. Também a falta de escadas, que possibilitem a subida do peixe - do rio para o interior das represas - na época da piracema tem causado o desaparecimento do pescado no São Francisco, e o surubim é um exemplo disso.

A geração de energia elétrica pelo sistema Chesf e a sua transmissão para outras localidades do país (o sistema elétrico brasileiro é interligado) têm reduzido, com certa rapidez, o nível dos reservatórios das hidrelétricas. Esse problema tem interferido, de forma preocupante, principalmente na irrigação que é praticada próxima às represas. Produtores de cebola em Sobradinho, por exemplo, têm padecido em conseqüência desse fato. Eles não estão conseguindo conduzir os sistemas de irrigação a contento, devido à rapidez com que o nível da represa decresce, afastando a área irrigada do ponto de captação da água, com resultados desastrosos nas colheitas. O primeiro sinal que demonstra a ocorrência desse problema é o aparecimento das ruínas das cidades que foram submersas. A velha Remanso, na Bahia, freqüentemente volta a tona, com o uso continuado das águas de Sobradinho na geração de energia.

O esvaziamento da represa de Sobradinho, de forma abrupta, tem intrigado muitos técnicos e, em especial, a nós, que estamos envolvidos com essas questões há mais de uma década. Torna-se difícil imaginar que Sobradinho – reservatório estratégico para o governo na implantação do projeto da transposição e um dos maiores lagos artificiais do mundo, com a capacidade volumétrica de que é detentor - venha passando por situações volumétricas críticas tão expressivas (em dezembro de 2007 estava com cerca de 15% de sua capacidade, após ter vertido no mês de abril). Esse caso nos leva a acreditar em uma total falta de controle no gerenciamento de suas águas.

Corroborando as nossas preocupações, em nota sobre as questões dos baixos volumes alcançados nos reservatórios do país, Henrique Cortez, coordenador editorial da revista eletrônica Eco Debate, do Rio de Janeiro, levantou a seguinte questão: “o reservatório de Sobradinho tem cerca de 320 km de extensão, com uma superfície de espelho d’água de 4.214 km² e uma capacidade de armazenamento de 34,1 bilhões de metros cúbicos em sua cota nominal de 392,50 m, constituindo-se no maior lago artificial do mundo, garantindo assim, através de uma depleção de até 12 m, juntamente com o reservatório de Três Marias/CEMIG, uma vazão regularizada de 2.060 m³/s nos períodos de estiagem, permitindo a operação de todas as usinas da CHESF situadas ao longo do Rio São Francisco. O reservatório – prossegue a nota - pode suportar até dois anos de estiagem até chegar a 10% de seu volume útil. Então como foi possível que fosse reduzido de 98,62%, em março/2007, para 16,52%, em dezembro/2007 - uma redução de 82,10% do volume útil em apenas nove meses. Nenhuma estiagem, por si só, explica tal redução, da ordem de 28 bilhões de metros cúbicos. Alguém mais, além de São Pedro, deve explicações para tal inacreditável redução”.

Diante de todo esse episódio, o que tem-nos causado estranheza é que nosso esforço em alertar as autoridades sobre a gravidade desses problemas não tem tido a atenção devida. No nosso entendimento, tem faltado sensibilidade aos nossos governantes diante dos graves problemas do nordeste seco, principalmente os de suas questões hidrológicas. Atualmente, uma visita do Presidente Lula à região de Porto da Folha (SE), no Sub-médio São Francisco, seria muito oportuna, com o propósito de conhecer de perto a situação de penúria hídrica em que se encontra o rio, verdadeiro filete de água serpenteando num leito assoreado. A concretização dessa visita daria a sua Excelência uma ótima oportunidade para avaliar as conseqüências dos investimentos que se pretendem realizar em uma obra que não resolverá os problemas de abastecimento das populações carentes nordestinas e, sobretudo, alertá-lo sobre os prejuízos que certamente serão causados nos projetos já implantados ao longo de toda sua bacia hidrográfica. Do jeito que as questões estão sendo conduzidas, é de se supor que a inviabilidade do uso das águas do rio São Francisco no projeto transpositório em curso venha a ser demonstrada, não pelos alertas insistentes dos técnicos a esse respeito, mas, e sobretudo, pela própria natureza nordestina, que não proverá os volumes necessários ao atendimento de suas necessidades.

Recife, 03 de março de 2008

João Suassuna - Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e articulista do EcoDebate

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