sábado, 1 de março de 2008

Águas para a vida e não para o mercado


A tragédia se repete. O cenário é o mesmo. As elites se arvoram de portadoras dos interesses populares no Nordeste sem nunca terem sido consultados os principais interessados milenarmente, os povos indígenas, os ribeirinhos, escreve Maria Amélia Leite, secretária-Geral da Associação Missão Tremembé e Membro da Frente Cearense por uma Nova Cultura da Água em artigo publicado no jornal O Povo, 22-03-2008.

Em 1975 os habitantes do Baixo São Francisco, em Sergipe, viviam na perspectiva da implantação da Codevasf-Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. Em conseqüência a expulsão dos ribeirinhos, com a chegada dos empreendimentos para exportação.
Nessa região vivem os Xokós. Pescadores, plantadores de arroz. Dançadores de reisado, do toré, do ritual sagrado. Tinham perdido as suas terras e, de uma hora para outra, foram proibidos de pescar, plantar, dançar o toré, ouvir rádio, jogar futebol. Um decreto de morte antecipada.
No ano de 1978 os XoKós cercam a Ilha de São Pedro, coração da velha aldeia, e mudam-se para lá. As famílias Xokós sobreviveram da solidariedade: dos parentes, CEB's, estudantes, entidades apoiadoras, igrejas, amigos.
Até os jornais locais foram impedidos de noticiar a situação dos Xokós. Um correspondente do jornal Estado de São Paulo, em Aracaju, furou o bloqueio. As reportagens vinham de São Paulo.
Foi nesse contexto que cheguei na diocese de Propriá, onde Dom José Brandão de Castro, com decisão, seguia o Evangelho de Jesus, animado pela teologia da libertação e a opção preferencial pelos pobres, um marco da CNBB.
Foi uma experiência fantástica de como resistir sem perder o rumo da fé em nosso Deus, a esperança na solidariedade, tendo a cultura como uma força de resistência.
Essa região hoje está completamente descaracterizada. A Ilha de São Pedro não tem mais o canal que a separava do continente. Os peixes se acabaram. Na ilusão de resolver o problema o governo trouxe peixes do Amazonas - os tucunaré lambiscaram os peixes do ecossistema local. As lindas lagoas... onde estão as águas do rio?

Essa situação tende a se reproduzir, caso o governo federal teime em realizar seu projeto de transposição.

A idéia da transposição remonta à dominação colonial portuguesa, quando foi tentada a integração dos Vales do São Francisco e Jaguaribe. As Frentes Agro-Pastoris da BA/PE, comandadas na Bahia por Dias D'Ávila, tinham por objetivo a defesa dos interesses dos senhores das sesmarias à margem direita do São Francisco.
À época, os Povos Indígenas não foram consultados e, organizados, reagiram. A lógica desses Povos não passava pela perspectiva econômica do projeto. E eles reagiram através de suas Confederações, se contrapondo com seus próprios meios. Superiores em guerreiros, mas não tinham a astúcia das metrópoles: Lisboa e Salvador. Foram dizimados e suas etnias consideradas extintas.
A tragédia se repete. O cenário é o mesmo. As elites se arvoram de portadoras dos interesses populares no Nordeste sem nunca terem sido consultados os principais interessados milenarmente, os povos indígenas, os ribeirinhos. O testemunho arqueológico ao longo das ilhas no Vale do São Francisco atestam essa ancestralidade
A intervenção do poder estatal a partir de 1975 com a criação da Codevasf/Betume, no Baixo São Francisco, as Hidrelétricas: Sobradinho-Ba e Itaparica-BA/PE (que mais destruíram as evidências arqueológicas nesses estados) e as Usinas: Paulo Afonso-BA ; Moxotó, em PE/Al; e Xingó SE/Al, foram uma brutal e inconseqüente intervenção na vida das populações ribeirinhas: indígenas, pescadores, canoeiros, rizicultores. Até a cerâmica, grande riqueza das tradições artístico-culturais em Sergipe, foi totalmente desmantelada.
O impacto no meio ambiente no Baixo São Francisco prejudicou atividades econômicas primordiais para a sobrevivência das populações ribeirinhas. Além de sérios prejuízos ao ecossistema. Todo o Baixo São Francisco se encontra hoje à deriva do desenvolvimento com a suposta e propalada sustentabilidade, comprometida.
O Semi-árido Nordestino somente poderá ser um lugar de vida harmoniosa quando o direito das populações e as necessidades da natureza forem respeitadas.

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