segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Um Frei, duas igrejas, um pecado

10/12/2007

Soraya Vanini Tupinambá - Frente Cearense Por Uma Nova Cultura da Água

O ato de jejum e oração permanentes em que se encontra Frei Luís Cappio há 15 dias em greve de fome, clamando pelo arquivamento definitivo doProjeto de transposição das águas do São Francisco, faz aflorar muitas águas, em analogia à profusão de posturas e comportamentos que eclodem num turbulento momento da vida política, espiritual e cidadã do povo brasileiro.

Diante da atitude do Frei, o Presidente Lula se apressou em dizer que preferia dar “um caneco d’água para 12 milhões de nordestinos a optar pela vida de um Frei”. A conduta revela postura profundamente contraditória e equivocada que parece partir de um pressuposto: o governo federal considera Frei Cappio um adversário político depreciável e perigoso inimigo público. Pior, aposta em que o povo brasileiro vai se render mais uma vez a seus populismos redutores das grandes questões nacionais e permanecer indiferente a duas tragédias nacionais iminentes: a morte do Frei e a Transposição das águas do São Francisco.

Todo esse cenário nos leva à discussão dos atos, mas sem deixar de lado os fatos que os motivam. Nunca em seus clamores pela abertura de diálogo o Frei pôs como condição que alguém renunciasse a suas idéias – pelo contrário, acreditou que se poderia avançar para uma solução, ao final de um amplo diálogo entre as partes e com a sociedade brasileira. Dessa forma, nunca foi colocado como “condição”, a exigência dessa aproximação, nem muito menos que as partes renunciassem a suas posições.

O dado mais relevante das primeiras reuniões que governo e setores em oposição à obra efetivaram, foi a abertura em se aprender com o outro.Infelizmente o diálogo foi inviabilizado e paralisado diante do processo eleitoral que se instalou. Mas a principal lição que aprendemos, foi a de posição oposta à sua.

Dessa forma, a transposição se efetiva como uma obra autoritária, quando por sua magnitude e pelo porte dos investimentos (cerca de 6,6 bilhões de reais), mereceria um amplo debate nacional em que a população brasileira debatesse, opinasse, sugerisse. No entanto, ela é autoritariamente imposta, sendo construída, nessa fase inicial, através do Exército Brasileiro. Foi em vista disso, que Frei Cappio retomou o jejum: por ters ido enganado. Não apenas ele, mas toda a sociedade brasileira. O governo não correspondeu aos compromissos que firmou, àquilo que pactuou: não abriu um amplo diálogo nacional para ver as melhores alternativas para o Semi-Árido brasileiro.

À intransigência governamental somam-se outras: a do profundo silenciamento da imprensa diante desse debate e a de setores da Igreja, a exemplo do Arcebispo da Paraíba, Aldo Paggotto, presidente do Comitê Paraibano pela Transposição das Águas do Rio São Francisco e também uma prova inconteste de que os “vendilhões do Templo” ainda habitam a casa do Senhor. Estes setores, favoráveis à transposição, ainda que recriminando a atitude do Frei e se pretendendo portadores de uma postura apolítica, acabam por se mostrar aliados do poder político – hegemônico e monolítico– que tenta submergir as opiniões em contrário e solapam, junto com governos e mídia, os cimentos da democracia. É esse mesmo poder que pretende usar a água da transposição, no Estado do Ceará, para saciar a sede de 3 grandes empreendimentos: duas termelétricas e uma siderúrgica,com a produção de aço para exportação, a custa da poluição e degradação do meio ambiente e, principalmente, a custa das populações do sertão Central, dos Inhamuns, de Irauçuba e de Crateús, lugares historicamente mais afetados pelas secas.

Frei Cappio nos demonstra vivamente que as idéias cumprem suas funções, fundamentalmente quando lhes respondemos com nossos atos – e quando lhes rendemos conta com a própria vida. Quem assume o risco de jogar sua vida numa causa não é um político, um economista, um jornalista, um empresário, nem qualquer pessoa que deseja alcançar fama ou prestígio. É um franciscano, formado em Filosofia, Economia e Teologia, dedicado aos Povos do Rio São Francisco.

Por isso, em vez de permitir a desautorização de atitudes como a de Frei Cappio, deveríamos indagar sobre as causas profundas do sofrimento humano que estão subjacentes à sua ação e, sobretudo, deveríamos gritar mais alto do que ele em defesa dos Povos do Semi-Árido. É urgente que aprendamos a perceber as desigualdades persistentes, cultivadas no Nordeste brasileiro– não como efeitos da “vontade divina” nem como o preço inevitável que temos de pagar pelo prometido “desenvolvimento econômico” a qualquer custo, senão como tragédias desumanas que, se aplicarmos os princípios éticos, poderemos evitar.

Velhos e novos arautos da velha cultura da água fazem questão de eternizar a imagem do pobre nordestino esquálido, em terra rachada, para justificara realização das grandes obras que, no passado, sustentaram a velha indústria da seca – e que continuam a ofertar seus serviços aos neo-coronéis nordestinos. Ao sermos contrários à obra da transposição, afirmamos uma nova cultura da água, acreditando que as chaves para aconstrução de um Nordeste viável e vibrante do ponto de vista econômico, social e político passam por uma política de distribuição, gestão efetiva e governabilidade democrática da água.

Durante a Caravana Nacional em Defesa do São Francisco, ainda que não conseguindo abrir diálogo efetivo com o governo federal, evoluímos para uma contraproposta à obra da transposição que, dentre vários outros aspectos, considera uma adução de 9m3/s para os estados de PE e PB –redimensionando o projeto atual de 28m3/s –, através de termo ajustamento a se efetivar entre o empreendedor e o Ministério PúblicoFederal com interveniência dos estados da bacia, do estado da Paraíba e do CBRH do Rio São Francisco. Nesse sentido, ficou clara também a necessidade da suspensão do eixo norte da transposição, junto ao incremento de apoio da União à introdução de tecnologias que garantam o abastecimento de águae produção para a população que reside no meio rural do semi-árido brasileiro. Ainda nesse processo, previmos a adoção das obras previstas no Atlas do Nordeste de Abastecimento de Água, produzido pelo mesmo governo federal. Diante disso, indagamos: com quem está a intransigência?

Em momentos como o atual, marcado pela intolerância e demagogismos, resta-nos uma mensagem de esperança ao afirmarmos que os valores sociais se revelam de maneira profícua nesses momentos de crise. Se por um lado sentimos a frustração, sentimos que muitos valores morais se arruínam, desaparecem, se comportam de maneira contraditória, por outro, se revela a consciência e vibram em nossos corações, atitudes as mais diversas que nos emocionam: a atitude de anônimas mulheres e homens que se irmanam hoje na greve de fome de Cappio em Sobradinho e pelo país afora, assim como nas sentidas palavras de solidariedade ao Frei Cappio, expressas pelo titular do Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel.

Convidados/as a mudar para sobreviver – ou, dito de outro modo, sermos outros/as para seguir sendo os/as mesmos/as –, este convite se expressa na atitude de Cappio e de amplos setores da sociedade que nos levam à inevitável conclusão de que não podemos permanecer paralisados/as em uma zona de conforto, porque isto seria a opção por adiantar a morte do espírito. Este ato, sim, seria um verdadeiro pecado contra nossa humanidade.

Assim frente à intransigência do governo diante da greve de Frei Cappio e às inúmeras manifestações da sociedade brasileira em apoio à sua atitude, a história se encarregará de demonstrar a falsidade daquele princípio simplista de que quanto pior, melhor. A experiência nos demonstra que, com freqüência, o que se afirma na prática é que quanto pior, pior – e que algumas posturas de intolerância, quanto mais se agudizam, mais ferem,mais destroem e, ás vezes, matam.

Fortaleza, 10 de dezembro de 2007

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