segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Transposição do Rio São Francisco e a luta de Frei Cappio. Entrevista especial com Ruben Siqueira e Roberto Malvezzi (Gogó)

3/12/2007

A IHU On-Line conversou, por telefone, com Ruben Siqueira e com Roberto Malvezzi, o Gogó, ambos da Comissão Pastoral da Terra da Bahia. Eles comentam sobre as articulações que estão sendo feitas em torno do jejum do Bispo Cappio, da situação dos indígenas e camponeses e das comunidades que vivem e dependem do Rio São Francisco, além de analisarem as atitudes tomadas pelo governo federal.
Por mais que os movimentos sociais sinalizem fortemente os problemas que a transposição do Rio São Francisco pode trazer para o Brasil e apresentem alternativas que irão beneficiar mais e custar menos, o governo está fechado em seu casulo sobre o assunto e não aceita outra verdade senão a sua.
Há dois anos, quando retomou o projeto de transposição, Dom Luiz Cappio, bispo de Barra, na Bahia, queria conversar com o governo, mas num primeiro momento não obteve retorno. Assim, entrou em greve de fome em prol das lutas feitas para salvar o Velho Chico. O governo parou as obras e prometeu dialogar após as eleições.
Lula se reelegeu e retomou o projeto sem ouvir quaisquer alternativas para o projeto que apresenta como a salvação para a sede do povo do semi-árido, mas que não passa de um projeto que viabiliza o desenvolvimento do agronegócio e hidronegócio na região. Dom Cappio tentou dialogar, não obtendo resposta daquele que ajudou a chegar à presidência. Refletiu, orou e novamente está em greve de fome pelo São Francisco e pela população nordestina.
Confira as entrevistas.
IHU On-Line - O movimento social, que se reúne em torno da luta contra a transposição do Rio São Francisco, tinha conhecimento da decisão de Dom Luiz Cappio de entrar novamente em greve de fome?
Ruben Siqueira – Existe um grupo que ele reúne, formado por algumas pessoas de sua confiança, com que Dom Cappio se aconselha. Essas pessoas são dos movimentos sociais. É o meu caso, que sou da CPT (Conselho da Pastoral da Terra), como também o do Gogó, o do Adriano Martins. Às vezes, ele se aconselha com o deputado Edson Duarte, que é do PV (Partido Verde). Ele vinha nos avisando que de estava chegando a hora em que deveria fazer isso e nos disse: “Então, vocês devem cuidar de tudo”. Portanto, nós começamos a trabalhar nessa direção, mas os movimentos, de um modo geral, não tinham conhecimento desse fato.
Gogó – Dom Luiz sempre vinha nos consultando sobre o andamento da obra. Então, ele indicava, com diversos sinais, que a qualquer momento ele poderia retomar essa greve de fome. No entanto, quando ele tomou a decisão final, nos comunicou no último momento, porque é uma decisão particular. Nós ficamos sabendo uns dois dias antes, quando ele telefonou a um grupo mais próximo seu, avisando que iria retomar a greve de fome.
IHU On-Line - Como vocês estão se articulando para acompanhar a decisão de Dom Luiz? Que iniciativas pensam em realizar?
Ruben Siqueira – Envolvidos nesta articulação estão os grupos da CPT, da Comissão Pastoral dos Pescadores, do Instituto Regional da Pequena Propriedade Apropriada de Juazeiro, do MST, do Movimento dos Pequenos Agricultores, do Movimento dos Atingidos por Barragens, do Sindicato dos Eletrecitários de Sobradinho e do Sindicato da Água e do Esgoto de Sobradinho. São essas instituições do movimento popular que estão aqui com Dom Cappio, além de seus familiares e pessoas da Diocese dele e da Diocese de Juazeiro. Então, esse grupo está se articulando com os seus movimentos, como a Via Campesina, a CPT Nacional, a Cáritas, o CIMI, a CNBB e com as representações das igrejas lá em Brasília e em suas sedes.
A partir da articulação feita aqui, há o contato e a articulação com os movimentos do centro do país. Agora há pouco, chegou a informação de que o Marcos Arruda estaria articulando outros companheiros e personalidades para fazerem jejuns que se somassem, um seguido pelo outro ou em grupo, em apoio a Dom Luiz.
Gogó – Existe uma articulação em nível local, dos movimentos sociais, da Diocese de Juazeiro, da comunidade ribeirinha, de equipe de pastorais sociais que estão acompanhando o caso dia-a-dia. Também recebemos visitas, além haver de palestras sobre o rio, sobre a convivência com o semi-árido. Junto a tudo isso, está havendo uma articulação nacional. Eu mesmo estou em Goiânia, numa plenária da Via Campesina. Aqui estão sendo elaboradas uma proposta e manifestações públicas nesse período imediato para que possamos nos solidarizar com Dom Luiz e, ao mesmo tempo, mostrar ao governo que a sociedade brasileira está insatisfeita com o modelo de desenvolvimento brasileiro - no caso, especificamente, com a transposição do Rio São Francisco.
Vamos fazer também várias manifestações, convocar as igrejas para que elas, em nível nacional, possam fazer celebrações, jejuns solidários, cartas, abaixo-assinados, romarias, além de refletirem sobre a situação das águas nas suas regiões. Ao mesmo tempo, os movimentos sociais irão organizar manifestações por todo o país. Elas estão sendo preparadas e, logo na semana que vem, irão começar.
A proposta é a de que sejam feitos mutirões de jejuns em nível nacional. As iniciativas, às vezes, se multiplicam sem que haja controle. Nós pensamos que o fato de ele retomar a greve de fome propicia essa multiplicação de fatos, eventos e reflexões e ajuda o povo brasileiro a entender a realidade, difícil e perigosa, a qual essa política governamental está nos conduzindo.
IHU On-Line - Por que Dom Cappio optou pelo município de Sobradinho para iniciar a greve de fome? Você pode descrever como é o local?
Ruben Siqueira – Dom Luiz está na Vila São Francisco, que é uma das três vilas que compõem o atual e recente município de Sobradinho. Essa cidade é resultado dos barrageiros, os operários que vieram de todos os cantos do Brasil, principalmente do Nordeste, para a construção da barragem de Sobradinho. Quando terminou a barragem, eles não tinham o que fazer, então fincaram o pé aqui, brigaram e conseguiram ficar. Era a antiga Vila São Joaquim, também conhecida por Cai Duro, em razão das mortes seguidas que aconteciam, tal o estado de degradação social e violência. A Vila São Joaquim era dos operários, e a Vila São Francisco era dos técnicos de nível médio. Havia, ainda, uma terceira vila, que era a Vila Santana, onde os engenheiros e chefes viviam. Essas três vilas hoje constituem o município de Sobradinho. Nós estamos a três quilômetros da barragem, da parede, do barramento de Sobradinho. A escolha de Dom Luiz para voltar à segunda greve aqui foi em função de essa barragem ter se tornado emblemática porque passou, depois de 30 anos, a ser o coração artificial do Rio São Francisco. Isso porque o rio está refém da produção de energia: 80% de sua vazão é para a produção dela. O que está acontecendo agora, no momento? Sobradinho está com apenas 14% de sua capacidade, e a vazão continua normal para produzir energia nas cinco barragens ajudantes de Sobradinho. Mas a energia, no momento, consome a água do São Francisco. Portanto, há uma seca terrível, e a população reclama. Ela está distante 30 quilômetros da água em torno do lago de Sobradinho, e essa situação emblemática foi escolhida por Dom Luiz para simbolizar que o São Francisco precisa de cuidados e não pode suportar mais um grande uso econômico de suas águas.
IHU On-Line – Como está a situação dos indígenas e camponeses que dependem, hoje, do Rio São Francisco?
Gogó – Nesse momento, o Rio São Francisco está passando por uma situação muito difícil porque não choveu nas cabeceiras e o nível de suas águas está muito baixo. Com isso, o lago de Sobradinho está com apenas 14% da sua capacidade total. Toda a vez em que o rio baixa, aparece um problema sério para as comunidades ribeirinhas. Neste ano, aconteceu um fato novo: quase 600 quilômetros de rio ficaram com a água de uma forma que sequer ela poderia ser utilizada para tomar banho, para pescar e muito menos para beber. A situação do rio é muito grave, e nesse momento se percebe a fragilidade dele, que necessita de uma revitalização. Desse modo, percebe-se o impacto que esta obra poderá causar o rio, já constantemente agredido. Os índios estão na luta por seus territórios, embora isso não apareça muito na mídia. Agora, ficamos sabendo que, na verdade, os canais da transposição irão atingir o território de 22 nações indígenas. Isso sequer é contado, falado ou citado no projeto de transposição, mas são realidades que precisam vir à tona.
IHU On-Line – Dom Luiz afirma que a sua decisão é "por amor ao rio, amor ao povo beradeiro do São Francisco e ao povo nordestino". Você acha que ele despertará apoio popular à causa da luta contra a transposição?
Ruben Siqueira – A expectativa é de que o apoio seja maior do que a incompreensão e a reação contrária. Porque o que acontece com esse projeto da transposição é que ele foi vendido por uma poderosa propaganda como solução para sede de dois milhões de pessoas. Essa é a fachada propagandista que esconde a verdade do projeto. Na verdade, trata-se de um projeto do hidronegócio, que esconde, por trás, a comercialização da água bruta do Nordeste. O objeto é interligar as águas do Nordeste, para lugares onde ela é rara e tem custo econômico. A partir daí, será estabelecida cobrança pelo uso da água bruto, porque, atualmente, só se paga pelo sistema de beneficiamento e distribuição. A grande finalidade dessas águas traz consigo os grandes interesses econômicos, como a pesca de camarão, a produção de frutas novas e de aço para a exportação. Tanto é verdade que esses canais e túneis passam muito longe dos setores mais secos. As águas vão em direção aos grandes açudes do Nordeste, que estão evaporando, ou seja, são cemitérios de água. Então, esse aporte, que não é tão grande, traz grandes prejuízos para o São Francisco e não representa a grande contribuição de água para a água estocada e sem uso no Nordeste setentrional. As razões e mecanismos de funcionamento do projeto são desconhecidos da população. Então, aqueles que compreendem isso, e isso é um objetivo do gesto de Dom Luiz, devem gerar discussão para que se busque informação e fazer com que as pessoas descubram a chantagem da qual estão sendo vítimas. Baseado nisso, a expectativa é que o apoio seja maior do que a reação contrária.
Gogó – Eu creio que um impasse está sendo criado. Ele irá suscitar o apoio popular, sem dúvida, mas também muitas reações contrárias. Até porque o governo insiste num marketing perverso e não tem coragem de afirmar que seu projeto tem finalidade econômica, escondido por trás de uma pretensa sede das pessoas. Nós estamos dizendo sempre a ele: se a transposição abastecesse mesmo 12 milhões de habitantes, para nós seria muito pouco. Nós temos projetos na mão, tecnicamente estruturados e montados, como o projeto da Agência Nacional de Águas, para beneficiar mais de mil municípios, atingindo 32 milhões de nordestinos. Se você soma esses 32 milhões com os dez milhões beneficiados pelas obras da Articulação do Semi-árido Brasileiro, teremos 42 milhões de nordestinos beneficiados pela metade do preço do custo da transposição. Então, o nosso problema é desmistificar a fala do governo. Nós sempre dissemos que, se tivéssemos cinco minutos numa rede nacional de televisão para apresentar ao povo brasileiro as alternativas que existem, o governo estaria desmoralizado no dia seguinte.
IHU On-Line – E como você acha que o governo recebeu essa notícia de que Dom Luiz está novamente em greve de fome pelo Rio São Francisco?
Ruben Siqueira – A primeira reação do governo já era esperada: uma reação nervosa e impensada. A fala de Lula de que entre 12 milhões e um, ele irá ficar com 12 milhões, revela uma reação intempestiva. Nós sabemos que o fato gerou bastante estranheza e descontentamento de vários e amplos setores da sociedade, dos movimentos sociais, de setores ligados ao governo. São reações de incompreensão da crise que se estabeleceu desde que o governo tomou a decisão e começou a operar a transposição do São Francisco. É exatamente essa falsa democracia que nós vivemos que leva a esse tipo de situação, de cidadãos de alto nível de consciência e compromisso lançarem mão de recursos extremados radicais, mas que trazem o que não está acontecendo no país atualmente sobre o sentido do Brasil: o desenvolvimento. É preciso colocar em pauta a discussão de um projeto nacional em função de seu próprio povo e o uso de suas riquezas, suas florestas, suas águas, seus minerais, sua biodiversidade, sua agricultura, não em função de grandes projetos capitalistas de alta lucratividade externos ou globalizados, mas primeiramente em função do seu próprio povo. É essa discussão que nós gostaríamos que fosse aceita pelo governo, não a reação de quem está diante de um inimigo. Dom Luiz, desde o primeiro momento da construção do PT, abertamente, até contra a orientação da Igreja, lutou pela eleição de Lula, pela construção do partido e, tal como nós, achava que o nosso projeto popular, o projeto que expressava o anseio da maioria do povo, estivesse na pauta desse governo. No entanto, o governo Lula trocou de pauta. Então, a reação que ele tem demonstrado é de que ele é a única alternativa para o clamor do povo.
IHU On-Line - Você acredita que o bispo levará o seu enfrentamento até as últimas conseqüências contra o governo?
Ruben Siqueira – Infelizmente, é essa a percepção que a gente tem, porque, diferentemente da outra vez, eu penso que até por conta desses dois anos de tentativa de diálogo, de conversa, de debate, Dom Luiz passou refletindo sobre essa decisão que tomou há poucos dias. É uma decisão pensada durante muito tempo, de muita construção e oração. Ele está irredutível e afirma que não tem outra alternativa nem negociação. Afirma, também, que o governo não é capaz e não honrou a palavra. Assim, ele não tem o que procurar e não tem que ser procurado por esse governo. A única coisa que ele aceita é a suspensão do projeto e a retirada do exército. Aliás, essa é outra coisa absurda num país democrático: o uso das forças armadas para um projeto polêmico. Ou o governo consegue criar um consenso para um caminho mais democrático operar, ou então deveria evitar esse tipo de recurso. A expectativa nossa diante da incompetência do governo em tratar com as questões democráticas e populares é a pior possível.
Gogó – Essa é a decisão dele. Então, ele se colocou numa decisão radical: ou o governo revoga o projeto ou ele vai até o fim. Todas as pessoas que conhecem Frei Luiz sabem que ele não é uma pessoa de atitudes intempestivas: ele é um homem muito reflexivo, um homem de orações e um homem de decisões. Então, tudo indica que ele está decidido a ir até o fim.
IHU On-Line – Se o governo não der atenção à manifestação de Dom Luiz e ele levar essa decisão até o fim, o que será do movimento sem ele?
Gogó – Se ele for até o fim, se o pior dessa situação se consumar, evidentemente que Dom Luiz se tornará uma referência nacional e internacional para gerações presentes e futuras. Ou seja, no fundo, o seu gesto sinaliza que a loucura está no modelo de desenvolvimento que destrói os rios, as florestas, explora as pessoas e mais: que a sociedade brasileira, neste momento, está confusa diante do governo atual e não consegue perceber esse modelo de desenvolvimento. Mas, num futuro muito breve, a atitude de Frei Luiz trará luz ao que significou esse momento na história do Brasil em termos de mistificação e de um projeto predador, que desrespeita tanto a natureza quanto as pessoas. Eu acredito que ele tem muita consciência do que está fazendo e que está mais preocupado em falar com o povo brasileiro para que ele pense na sua situação do que falar com o próprio governo. Dom Luiz sabe que o governo está fechado ao diálogo desde o primeiro dia. O governo tem esse projeto fechado e jamais aceitou dialogar sobre alternativas que são reais e existem, mas as quais prefere desconhecer

entrevista publicada pelo IHU On-line, 01/12/2007 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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