sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O Dilema da Transposição

O Dilema da Transposição, artigo de Apolo Heringer Lisboa
20/12/2007

http://www.ecodebate.com.br/Principal_vis.asp?cod=7053&cat=

[EcoDebate] Decifra-me ou devoro-te! - eis a questão colocada à sociedade
pelo projeto da transposição do São Francisco. Fez emergir o que a
indústria da seca ocultava: a verdadeira situação sócio-ambiental do
semi-árido brasileiro e da bacia hidrográfica do São Francisco. O rei está
nu, apanhado na mentira política e na fraude técnica, por dolo ou
desconhecimento. Esta questão é emblemática e apaixonante porque concentra
todas as mazelas de uma política perversa e sistêmica. Lula cedeu às
pressões de grupos cuja hegemonia ele prometia pôr fim. Esta atitude mina
a confiança no sistema democrático brasileiro.

O dilema tomou características agudamente trágicas com a decisão do bispo
Luiz Flávio Cappio de permanecer em jejum e oração, até o arquivamento
definitivo do projeto e a retirada do Exército. O sacrifício extremo de
dom Cappio se dirige à nação brasileira. Pretende despertá-la e fazê-la
refletir, acreditando que isto possa liberar a grande energia que é a
consciência popular, ainda que após sua morte. É um gesto de quem crê numa
proposta de transformação, não apenas em projeto de poder pessoal ou
partidário.

O jogo ilusionista do projeto da transposição prometeu o impossível, levar
água do São Francisco a sedentos sertanejos de uma população dispersa pelo
sertão. Água que está lá nos ociosos açudes e no não-aproveitamento
eficiente das chuvas. Como contrapor à mentira? Os grandes meios de
comunicação são dependentes da venda de espaços ao governo federal e
grandes empresas, que esperam lucrar com as obras. A liberdade de empresa
sobrepujou a liberdade de imprensa, e as concessões de estado empoderaram
o interesse privado em detrimento do interesse público. Sem informação
correta as pessoas se equivocam mais facilmente. O dilema da democracia
brasileira é estar permanentemente acossada entre o poder econômico e as
mentiras implantadas na opinião pública.

Há pessoas que não crêem nas religiões, mas têm fé, pois para eles a vida
e a história têm lógica. Enxergam uma inteligência que se manifesta na
Natureza, nos códigos genéticos, nas paisagens e expressões dos seres
vivos, na preocupação nossa com a liberdade e com a construção ética de um
sistema solidário, biocêntrico e ambientalmente sustentável. Este tipo de
fé lógica, que prioriza o conhecimento científico e a imaginação criadora,
é incompatível com todas as formas de mentira e de negação da vida, em seu
sentido mais amplo e generoso. Por isso convergimos com dom Cappio e o
admiramos. Esta é a posição da coordenação do Projeto Manuelzão, da
Universidade Federal de Minas Gerais, que organizou a Caravana do São
Francisco e do Semi-Árido, em Agosto, percorrendo 11 estados e lançando
proposta de diálogo e negociação de 7 pontos, que o governo federal não
respondeu. Ela foi representativa e assinada por todos os segmentos
envolvidos na questão que neste momento dom Cappio encarna.

Na Índia, Mahatma Gandhi desenvolveu estratégia de transcendental
importância histórica, propondo a resistência ativa não-violenta. Morrer
se for preciso, matar nunca. Levou até o fim, com coerência impressionante
de fé, sua missão. Aqueles que criticam a postura de dom Cappio rejeitam
também Mahatma Gandhi. Não percebem que frei Cappio, com capacidade rara
de descortínio, antevê o dilema da guerra e da paz que ronda nossa
sociedade. A exemplar opção da resistência ativa não-violenta rejeita a
crítica das armas; tenta obter, através do diálogo político e da objeção
de consciência solução para os conflitos sociais. Opor a este caminho é
que seria uma verdadeira loucura. Os partidos estão irrecuperavelmente
degenerados, a corrupção tomou conta das instituições e do processo
eleitoral, e a democracia está encurralada. Caso não surjam propostas e
novas estratégias para o povo fazer valer sua vontade, como a da
resistência ativa não-violenta da sociedade civil, a violência poderá
crescer e assumir dimensão política. Aí será tarde demais.

Na carta que enviou ao presidente Lula dom Cappio lhe diz: “o senhor não
cumpriu sua palavra. O senhor não honrou nosso compromisso. Enganou a mim
e a toda a sociedade brasileira. Uma nação só se constrói com um povo que
seja sério, a partir de seus dirigentes. A dignidade e a honradez são
requisitos indispensáveis para a cidadania. A vida do rio e do seu povo ou
a morte de um cidadão brasileiro”.

A decisão está com o PT e o presidente Lula. Caso dom Luiz Cappio venha a
falecer, caso eles não se rendam a tempo à necessidade do diálogo
verdadeiro na construção política brasileira, teremos um mártir. Seus
algozes, com sigla, rostos e nomes, que por ação, omissão e acordos
espúrios produziram este episódio, terão que se esconder do julgamento
inclemente da História, que o infinito Tempo irá tingir de cores cada vez
mais nítidas, haja em vista os casos de Anás, Pôncio Pilatos e Herodes.

A área onde o Exército está é muito próxima da região de Canudos, e de
onde está o bispo, terra onde os sertanejos enfrentaram no final do século
XIX forças análogas às que defendem a transposição. “Nós tentamos ser a
Organização. A Frente de Libertação. Nós tentamos ser a Revolução. Banir
para sempre a falta de pão deste chão. Mas chegaram as ordens da
República. E o regime oposto chegou no sertão”. (Música de Marcos de
Canudos, lembrando a luta liderada por Antonio Conselheiro até 1897). Como
dizia Lula no passado: “É preferível a lágrima da derrota que a vergonha
de não haver lutado”.

(*) A Carta da Caravana e a revista Transposição: Águas da Ilusão, estão
no site www.manuelzao.ufmg.br

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