Se me permitem um tom mais pessoal, a formulação do tema dessa mesa-redonda, talvez a mais polêmica deste encontro, tem especial significado para mim, por juntar o passado e o presente de minha vida no São Francisco e no Nordeste, num transcurso de 26 anos, através dos quais deixei de ser “paulista” para ser “nordestino”, lúcida e apaixonadamente.
Cheguei em dezembro de 1980 para trabalhar na Diocese de Juazeiro, região da barragem de Sobradinho, no âmbito da pastoral geral e da Pastoral da Terra em particular. Logo veio a segunda grande cheia após o fechamento das comportas de Sobradinho. As inundações a jusante, sobretudo em Juazeiro, exigiam muitas ações de solidariedade da Diocese com os desabrigados. Uma campanha em especial, relacionada a outro flagelo, me chamou a atenção – a arrecadação de mantimentos para as 74 famílias de Barra da Cruz, município de Casa Nova, que haviam retornado das agrovilas de Serra do Ramalho para onde se pretendeu levar os desalojados de Sobradinho, solução derradeira, de última hora, que foi um quase completo fracasso. O drama daquela gente arranchada com toda precariedade sob as árvores, no carrasco da beira-lago, lembrava Canudos (110 anos comemorado no mês passado), das fotos de Flávio de Barros, situação que deu origem à denominação “favelas” dada por ex-combatentes daquele guerra aos apinhados de gente nos morros cariocas. Eram “favelados” de uma outra e mesma guerra, interna, das razões de Estado, alegadas razões do desenvolvimento, contra seu próprio povo. Na minha ingênua ignorância paulista achava que nas agrovilas viveriam melhor e não entendia completamente aquele retorno...
E os dramas pós-barragem, sobretudo dos cerca de 57 mil camponeses expulsos, nos envolveram cada vez mais na CPT, nas lutas contra a grilagem (Riacho Grande, Amalhador, em Casa Nova), contra os “coronéis” da política local e regional, contra os “pelegos” sindicais, pelo reassentamento na borda do lago, pelas indenizações, pelos títulos dos lotes, pela organização dos lavradores-pescadores, do MAB, dos assalariados rurais, por um plano popular de desenvolvimento regional sustentável, pelo acordo de pesca ainda hoje não cumprido... pela reinvenção da vida na instável beira-borda do rio-lago... Quando me meti a um tempo de estudos, numa tentativa de compreender com ajuda das ciências tudo aquilo, não foi outro meu tema de pesquisa e dissertação. Ao ponto de virarem meu tema de pesquisa e dissertação no Mestrado em Ciências Sociais, na UFPB / João Pessoa, concluído em 1992. Com o título “Do que as água não cobriram”, versava sobre o tempo e o espaço, a memória e o movimento dos camponeses atingidos, que fizeram deles, no enfrentamento possível à época da ditadura militar, reinventores obstinados e eficientes de seu mundo transtornado pela barragem, numa reafirmação política de uma identidade negada, pelos promotores da obra e mesmo por mediadores e aliados (sindicatos, partidos, igreja, associações), na disputa pela sua representação social e política.
Atualmente, iniciado em 2005, estou impregnado pelo São Francisco, no projeto Articulação Popular pela Revitalização, atuando em toda a bacia, promovido pela CPT – Comissão Pastoral da Terra e pelo CPP – Conselho Pastoral dos Pescadores. Tem sido aí o embate, mais do que contra a transposição, a favor de uma outra visão e de uma outra relação com os bens naturais configurados ambiental, social e culturalmente na Bacia do Rio São Francisco, centradas nas interações da sócio-biodiversidade, ao revés do economicismo desenvovimentista e tendo as populações da bacia como protagonistas de ações e pressões por verdadeira revitalização, de uma outra economia e outra ecologia.
Este percurso evidencia que, não obstante os avanços jurídico-políticos recentes da Sociedade e do Estado no Brasil, as intervenções feitas no meio-ambiente natural e social da Bacia do Rio São Francisco, de Sobradinho à transposição, não mudaram substancialmente quanto às finalidades liberal-desenvolvimentistas e estratégico-políticas, nem mesmo quanto ao modo autoritário, ainda que tenham se tornado mais sutis, revestidas das armas e artimanhas do marketing e da pseudo-participação ou “controle social sob controle”. Neste meio tempo, aprofundou-se a dependência do desenvolvimento brasileiro, à escala globalizante do ciclo neoliberal, tendo incorporado o verniz da sustentabilidade e da responsabilidade social e ambiental em seus empreendimentos.
* * *Costuma-se traduzir o nome original indígena do Rio São Francisco – “Opará” – por “Rio-Mar” simplesmente. Um bom dicionário jesuíta de Tupi, que tinha Dom José Rodrigues de Souza, bispo emérito de Juazeiro, grande lutador do povo de Sobradinho (a quem aqui rendemos homenagens, nessa memória de 30 anos da barragem e de suas lutas), dizia que “Opará” é rio “sem rumo definido, de limite incerto, errático”. Como em quase todos os topônimos brasileiros de origem indígena, é perfeito. Assim era o “Opará”, batizado São Francisco no dia do Santo em 1501, pelos navegadores Américo Vespúcio e André Gonçalves. Assim era antes das barragens, hidrelétricas e canais de irrigação e do interminável “ciclo do desenvolvimento” contra o povo. O ciclo natural de cheias e vazantes, altas e baixas, grandes e pequenas, fazia jus ao nome de um rio que tem declividade de apenas 7,4 cm por km (0,8 m/s), na maior parte de sua extensão de quase 3 mil Km (entre Pirapora-MG e Juazeiro-BA), devida à falha geológica conhecida por Depressão Sanfranciscana.
Talvez seja oportuno dizer, sobretudo aos companheiros e companheiras de outros países, que além de um milagre da natureza, o São Francisco, que corre ao contrário dos outros e é a maior bacia hidrográfica inteiramente brasileira (640 mil km2), terceira do país, é um dos símbolos informais da nacionalidade, tido como o “rio da unidade nacional”, porquanto serviu de caminho entre o Norte onde se iniciou o Brasil e o Sul onde o Brasil se centralizou.
Não obstante tanta importância geográfica, histórica, cultural e política, o “ciclo do desenvolvimento”, propagado como modernização e implantado como modernização compulsória e conservadora, iniciado na segunda quadra do século XX, viu nele, num primeiro momento, apenas hidreletricidade. Já são sete Usinas Hidrelétricas em sua calha, que desalojaram mais de 140 mil pessoas, produzem 10.356 megawats, comprometendo cerca de 80% de sua vazão; e mais quatro barragens se anunciam... Depois, ao final da terceira quadra, acrescentou-se a irrigação de frutas para exportação e, mais recentemente, no limiar do século XXI, para os novos “negociantes da ecologia”, irrigação de agrocombustíveis para exportação e perpetuação do modelo de civilização baseada nos carburantes. E suas águas, límpidas ou barrentas, contaminadas, como agora por cianobactérias como nunca se viu, passaram a ser consideradas, por aparato legal inclusive (a Lei no 9433/97 ), “recursos hídricos” para todos os usos, inclusive econômicos intensivos em água. A consolidar o “negócio da água”, o hidronegócio que se junta ao eletro e ao agronegócio, iniciaram-se as obras do Projeto de Transposição ou, no eufemismo oficial, Integração de Bacias do São Francisco com as do Nordeste Setentrional, para abastecer de água alegados 12 milhões de sedentos.
Além da poluição urbana, industrial, minerária e agrícola e das barragens, degradam os ecossistemas hidro-ambientais e culturais do São Francisco o desmatamento e o conseqüente assoreamento, as carvoarias e a irrigação, a serviço da expansão do agronegócio na Bacia, às margens da calha e dos afluentes e, sobretudo, nos Cerrados, bioma responsável por mais de 80% de suas águas. Resultado dessa série de múltiplos, sobrepostos e indisciplinados usos, o rio São Francisco, do qual dependem os 14 milhões de pessoas que são a população da Bacia, tornou-se um rio condenado, cuja revitalização, trabalho hercúleo de gerações, muito além do atual e pífio Programa de Revitalização do Governo Federal, dificilmente lhe devolverá a vitalidade e o vigor.
* * *De Sobradinho à transposição, as populações afetadas e atingidas continuam sendo tratadas, numa inversão perversa, como objeto de um sujeito que é a própria obra de engenharia do setor elétrico e, hoje, do recente e promissor “setor hídrico” – ou “hidronegócio”. Em 1992, escrevia na dissertação: “Na visão tecno-burocrática, as conseqüências da implantação do reservatório apenas aparentemente é problema para a população atingida. Na verdade, esta é que é ‘problema’ para o setor elétrico, ‘entrave’, ‘obstáculo a ser removido’” . “Limpeza da área”, termo militar, era o usado naqueles tempos militares ditatoriais. Recentemente, 30 anos depois, o Presidente Lula se referia a indígenas e quilombolas, na companhia do meio-ambiente, do Ministério Público e do Tribunal de Contas, como “entraves ao crescimento”.
O desenvolvimentismo acredita que a obra ou o projeto tem “papel civilizador”, “modernizador”, ao tomar as populações atingidas do nada ou pouco que são suas vidas e resgatá-las para uma vida acreditada como melhor. (Há pouco, ouvia o depoimento de Depeta, liderança Tuxá, de Rodelas-BA, povo atingido pela barragem de Itaparica, até hoje sem novo território. Dizia ele que “índio sem seu território é nada”.) Diante dos limites estruturais das políticas públicas, pode-se até ser induzido a concluir que
“a obra não é “problema” mas “benefício” para os que têm a sorte de ser por ela alcançados. É que se depreende de declarações com esta do dr. João Paulo M. Aguiar, chefe do Departamento de Obras de Sobradinho, criando um diálogo fictício com um camponês imaginário:
(...) se você espremer, se você mergulhar com profundidade no que era a vida dele, no que é a vida dele hoje, no que ele recebeu da CHESF, como foi processada a relocação, as alternativas que ele teve, ele provavelmente vai chegar à conclusão: “A CHESF me ofereceu muitas oportunidades, e graças à CHESF, hoje eu estou melhor que estava antes”. É essa situação da CHESF na área” (cit. por Joselice JUCA, CHESF – 35 anos de história, 1982) .
Ora sabemos que os trabalhos para construção de Sobradinho tiveram início em 1972 e apenas em 1974 tornou-se real a alternativa da agrovilas no Programa Especial de Colonização Serra do Ramalho, 700 km distante. Foi no início de 1974 também que os quatro municípios atingidos pelo desalojamento de populações foram decretados “área de segurança nacional”. (Sem esse decreto, as áreas das obras da transposição feitas pelo Exército Brasileiro estão, nesse momento, militarizadas...) Até então e mesmo depois, imperava a indefinição e a insegurança quanto ao futuro. As alegadas “alternativas” que o discurso oficial esforça-se em dizer que foram “apresentadas” – agrovilas, reassentamento na borda, na caatinga e migração –, a rigor, foram as efetivamente tomadas pela população no confronto com a imprevidência calculada da CHESF.
Estive recentemente em Curaçá-BA, nas áreas que serão atingidas por duas novas barragens, no Submédio São Francisco, entre Sobradinho e Itaparica, nas comunidades de Pedra Branca, Riacho Seco, Ilha Redonda, Cerca de Pedra e outras. Por coincidência, pouco depois, estive em Cajazeiras e São José de Piranhas, na Paraíba, nas áreas ditas beneficiadas pelo Eixo Norte da transposição, onde está anunciada a barragem de Cuncas, donde águas do São Francisco seguiriam para o Rio Salgado, no Ceará, e o Rio Piranhas/Assu, no Rio Grande do Norte. Encontrei a mesma insegurança e a mesma incerteza, como há 30 anos em Sobradinho. A barragem de Pedra Branca, ao pé da qual seria a tomada d’água do Eixo Norte da transposição, vai inundar áreas dos reassentados da barragem de Itaparica, suas casas e seus lotes irrigados. Criou-se uma situação inusitada e odiosa, a área é também território dos índios Tumbalalá e está conflagrada, havendo um movimento contra os índios, a favor da barragem, tipo “Barragem, sim, Índios, não”. Em Cerca de Pedra, local do barramento, o povo está assustado, há marcos pelo povoado e nenhuma informação segura, ao par de um forte sentimento contrário à obra. Em São José de Piranhas – PB, olhos d’água e áreas férteis serão inundadas, as pessoas estão confusas, querem água, mas não queriam sair e não sabem para onde vão. As avaliações de suas posses foram feitas há dois anos e não mais tiveram notícia nenhuma... Uma família receberia R$ 40 mil por seus bens (R$ 100,00 o hectare de terra, R$ 25,00 um pé de laranja ou de coco, R$ 100,00 um pé de manga, etc.) e iria para cidade, onde a especulação imobiliária já elevou um lote de 10x15m ao preço de R$ 10 a 12 mil reais; com isso, construiria uma casinha, inferior a que tem hoje, e viveria de quê, de olhar a rua pela janela?
Mas, importa aqui notar as continuidades entre Sobradinho e transposição, além da evidente na concepção da população como “entrave” ao “desenvolvimento”, hoje reduzido a mero “crescimento econômico”, também essa “ideologia do benefício”. Isso é importante porque, mais do que o benefício indireto e de percepção difusa e imprecisa no caso da energia de Sobradinho (muitos atingidos permaneceram por muitos anos e ainda há quem permaneça sem acesso à luz elétrica, às vezes sob linhas de transmissão), no caso da água da transposição o benefício direto é a própria razão alegada com que se pretende justificar a obra. A propaganda, como marketing moderno, opera mais sutil e eficazmente a brutal mentira da sede humana como finalidade da obra. Tanto é mais necessária essa operação quanto mais se devem esconder os mecanismos futuros de cobrança, da população beneficiada ou não, de todo o Nordeste Setentrional, principalmente a urbana, através do “subsídio cruzado”, dos custos da água cara, destinada a usos econômicos intensivos em água, como irrigação agrícola, carcinicultura (criação de camarão) e siderurgia. Estes são os destinos das águas da transposição : 87% no eixo norte (quase 40 dos 45 m3/s de volume médio) e 37% no eixo leste (6,7 dos 18,3 m3/s de volume médio). No total, 70% serão para irrigação e 26% para uso urbano e industrial. Os 4% restantes, diz-se, serão gratuitos para a população difusa das caatingas, a imensa maioria muito distante dos canais.
No Nordeste brasileiro, região semi-árida mais açudada do mundo, existem 70 mil açudes, que são barragens em rios intermitentes, e acumulam 36 bilhões de m3, inventaram uma deficiência, uma insegurança hídrica que justificariam um aporte externo de água. É forçosa a pergunta: para que? Para se ter idéia do absurdo deste projeto da transposição, considere-se que a vazão contínua a ser transposta do São Francisco, 26 m3/s, representa a capacidade da válvula de sangramento do açude Orós, no Ceará, e a vazão máxima, 127 m3/s, 2,1 bilhões de m3, a evaporação do açude Castanhão, no Ceará . O ex-ministro da Fazenda, o paraibano Maílson da Nóbrega, chamou esses açudes de “cemitérios de água”, outros os chamam “evaporatórios” e não “reservatórios”...
Ao contrário da propaganda oficial, a transposição pouco tem a ver com sede humana, uma vez que a água estocada nos açudes públicos do Nordeste Setentrional não está toda disponível à população quando dela precisa, nos períodos secos. Tem a ver , sim, com o negócio privado da água, o grande negócio mundial já presente e muito mais no futuro, da água e da produção alimentar dependente da irrigação.
* * * Cabe questionar o desenvolvimento do semi-árido pautado pela e na irrigação, pois tanto a transposição hoje, como ontem Sobradinho, têm essa finalidade para os seus complexos hídrico-energéticos. E Sobradinho passará a ser operado também em função de volumes a serem transpostos pelos gigantescos canais, túneis, estações de bombeamento e aquedutos. No semi-árido existem aproximadamente 500 mil hectares irrigados, sendo 140 mil em áreas públicas e o restante em áreas privadas. Cerca de 50% dos custos são subsidiados com recursos públicos. Estudo patrocinado pelo Banco Mundial fez uma análise bastante minuciosa sobre a irrigação no semi-árido, inclusive em regiões da transposição, tendo em vista estudar a correlação entre a agricultura irrigada e a diminuição da pobreza na região. Durante as três últimas décadas, foram investidos mais de US$ 2 bilhões de recursos públicos em obras ligadas à irrigação, destinados ao abastecimento de 200 mil hectares no semi-árido, dos quais 140 mil considerados produtivos. Apenas quatro dos onze projetos estudados são superavitários – sete são deficitários. Do ponto de vista social e ambiental são “desastrosos”. O que não inviabiliza a irrigação como alternativa para o desenvolvimento da região, conclui compósito o estudo...
No entanto, segundo a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, há grandes limites impostos à irrigação no semi-árido: apenas 5% dos solos da região são irrigáveis e há água para apenas 2% (daí a transposição). Portanto, há limites intransponíveis que não permitem generalizar a irrigação, nem tomá-la como eixo de desenvolvimento.
O importante trabalho de Roberto Marinho Alves da Silva, Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido – transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento , distingue três concepções de desenvolvimento da região semi-árida: “combater as secas e os seus efeitos; aumentar a produção e a produtividade econômica na região, sobretudo com base na irrigação; e conviver com o Semi-árido, combinando a produção apropriada com a qualidade de vida da população local”. Afirma o autor :
“(...) a sustentabilidade do desenvolvimento, como um novo paradigma civilizatório, vem sendo traduzida na proposta de convivência com o Semi-árido, orientando um conjunto de medidas socioculturais e econômicas capazes de modificar os padrões de apropriação, reprodução e gestão dos bens e recursos disponíveis, com a finalidade de transformação das condições de vida da população sertaneja”.
Entram em cena novos atores e propostas de convivência, que passam a disputar a formulação de políticas públicas. As políticas governamentais, na contramão, visam a modernização econômica e tecnológica no contexto do antigo desenvolvimentismo, continuam reféns do modelo do século/milênio passado .
O Governo Lula, dito “da mudança”, não se constrange em lançar mão dos mecanismos tradicionais e ultrapassados da “política” e da “indústria da seca”, sedimentadas pela “ideologia da seca”: as irregularidades hídrico-pluviométricas da região semi-árida pretensamente justificantes de investimentos públicos em obras de usufruto privado e perpetuação do status quo no Nordeste, de dominação e pobreza, com reflexos e implicações políticas, econômicas e sociais em âmbito nacional. Um retrocesso até certo ponto surpreendente.
* * *
Une também Sobradinho à transposição a mesma empresa pública de economia mista gestora da energia, que será também da água transposta – a “CHESF Água”. Conforme estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o preço médio da água bruta para cobrir os custos fixo e variável do projeto é de R$ 0,11 por metro cúbico . Uma vez que estes custos – até quatro vezes maior do que o atualmente praticado nas bacias doadora e receptoras, onde só se paga pela energia subsidiada do bombeamento – comprometem os lucros dos empreendimentos, o esquema deverá ser o mesmo praticado no subsídio à energia, pelo qual a população paga até 10 vezes mais que as empresas (caso de Minas Gerais), como vem sendo denunciado e combatido pela Campanha do MAB “O preço da luz é um roubo”. Confirma-se a inversão perversa subjacente ao projeto da transposição, nas intenções inconfessas, sonegadas à população, de mercantilização da água justamente onde ela é mais problemática e onde se cultivou secularmente o mito das águas do São Francisco como única salvação para a seca.
A propósito destas manipulações e inversões de valores e sentidos, recicladas e potencializadas pelos mecanismos da globalização neoliberal, a esvaziar e falsificar o conteúdo das palavras, cabe a lúcida análise de Milton Santos, em uma de suas últimas entrevistas : “Quanto mais nos informamos, mais nos tornamos desinformados. (...) E nós continuamos com as velhas palavras, com conteúdos que não são eficazes, razão pela qual a democracia sucumbe em toda a América Latina. Essa desinformação continuada e esse poder implacável do dinheiro globalizado, são uma ofensa às pessoas, mas aparecem como se fossem suas metas. Isso é o dramático do nosso tempo.”
* * *
Ao perguntar “para onde corre o São Francisco”, o próprio ribeirinho das margens próximas à foz, vem lembrando Luiz Gonzaga, o mestre da música e da cultura nordestina e brasileira, que em sua canção preferida (“Riacho do Navio”) dizia o “rio São Francisco vai bater no meio do mar”. Pois “ia bater no meio do mar”, vem se cantando, para denunciar o avanço das águas do mar rio adentro, a chamada “cunha salina”, ainda mais penetrante no subsolo que na superfície, na qual já adentrou 60 km. “Mar-Rio” - inverte-se o sentido original do “Opará”. Conta a história que as caravelas portuguesas já sequiosas ao chegar da metrópole se reabasteciam de água doce até duas léguas da foz do São Francisco. Era o tempo do “Opará”, de Kiriris e Kaetés. Hoje, 500 e tantos anos depois, ninguém sabe ao certo “para onde corre o São Francisco”... Para poderosos cofres e urnas eleitorais, ao que indicam os negócios antigos e novos com suas velhas e encardidas águas...
Os olhares sobre um rio, os sentidos de um rio viraram campo de disputa, a água tornada o “ouro azul” de grandes negócios e estratégias de guerra, de mercado e literalmente. Como sempre – e essa é a tradição do São Francisco – aos pobres resta a resistência. Indígenas, quilombolas, camponeses, pescadores, vazanteiros, geraiseiros, atingidos por barragens, estudantes, educadores, sindicalistas, ONGs, grupos urbanos – deserdados filhos do Velho Chico, nas caatingas e cerrados, juntam-se em luta sob a bandeira, de outro paradigma civilizatório: “São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo”. São a esperança!
Notas1 Texto apresentado na Mesa Redonda, com esse mesmo título, no I Encuentro Ciencias Sociales e Represas e II Encontro Ciências Sociais e Barragens, em Salvador – Bahia, Brasil, no dia 22 de novembro de 2007.
2 Agente da CPT – Comissão Pastoral da Terra / Bahia, coordenador do projeto Articulação Popular pela Revitalização da Bacia do Rio São Francisco CPT/CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores, graduado em Filosofia e Pedagogia, com Mestrado em Ciências Sociais.
3 Trata-se da Lei Nacional de Recursos Hídricos que estabelece as condições para o “negócio da água”, tornando-a bem econômico, sob controle da ANA – Agência Nacional de Águas e co-gestão dos Comitês de Bacia.
4 SIQUEIRA, Ruben. Do que as águas não cobriram – um estudo sobre o movimento dos camponeses atingidos pela barragem de Sobradinho, João Pessoa, UFPB / Mestrado de Ciências Sociais, 1992, p. 50, (mimeo).
5 Op. cit, p. 51.
6 Conforme dados constantes nos EIA-RIMA – Estudos e Relatório de Impactos Ambientais, obrigatoriamente públicos, os únicos a que a sociedade brasileira tem acesso. Nos sites do governo na Internet, o que se encontra nada mais é que peças publicitárias a “vender” a transposição...
7 RIBEIRO, Manoel Bonfim. Transposição, uma análise cartesiana. Artigo inédito, a ser publicado proximamente num número especial sobre o Rio São Francisco do Cadernos do CEAS / Salvador.
8 Impactos e externalidades sociais da irrigação no semi-árido brasileiro: www.bancomundial.org.br.
9 Brasília, UNB, Tese de Doutorado, 2006, p. 25, (mimeo).
10 Op. cit, p. 28.
11 Cf. op. cit., pp. 25-26ss.
12 cf. BAHNEMANN, Wellington, Chesf irá gerir o rio São Francisco, SP, DCI, 19/01/2006, http://www.ecodebate.com.br.
13 Entrevista a Glauco FARIA, A técnica e o poder, in Fórum, n. 56 (novembro), Ed. Publisher Brasil, 2007, p. 12.
Ruben Siqueira é Agente da CPT – Comissão Pastoral da Terra / Bahia, coordenador do projeto Articulação Popular pela Revitalização da Bacia do Rio São Francisco CPT/CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores, colaborador e articulista do EcoDebate
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