terça-feira, 31 de julho de 2007

Transposição do Rio São Francisco



INTRODUÇÃO

Pretende-se demonstrar, neste artigo, que os diagnósticos realizados pelo Projeto estão eivados de equívocos e impropriedades. Para isto, o autor faz uma análise crítica dos principais argumentos utilizados na elaboração do Projeto de Transposição ou na defesa da sua execução.

EXAUSTÃO DAS DISPONIBILIDADES HÍDRICAS DAS BACIAS RECEPTORAS

Pelo Projeto, estas disponibilidades, superficiais e subterrâneas, estariam exauridas desde o ano passado (2006), quando confrontados com as demandas atuais.

Esta avaliação é falaciosa porque se baseia nas disponibilidades hídricas de uns poucos reservatórios influenciados diretamente pelo Projeto, não contemplando a unidade de gestão preconizada pela Lei 9.433/97, que é a bacia hidrográfica. Conseqüentemente, subestima a avaliação do potencial e das disponibilidades das diversas bacias pretensamente receptoras.

Na realidade, o potencial (vazão média de longo período dos escoamentos superficial e subterrâneo) e a sua dependente disponibilidade superam, com sobras, as demandas totais de cada bacia, correspondentes aos abastecimentos humano (urbano e rural), da pecuária, industrial e de projetos de irrigação existentes. É o que demonstra o quadro a seguir:

Confronto Disponibilidades X Demandas Totais (Em milhões de m³/ano)

Obs.: *- Demandas referidas ao ano 2003; **- Demandas referidas ao ano 2023;
***- A parcela do Potencial está acrescida das Reservas Exploráveis do Sistema Aqüífero Aluvial.

VULNERABILIDADE DO ABASTECIMENTO URBANO COM OS RECURSOS HÍDRICOS LOCAIS

Esta vulnerabilidade existiria, manifestada pelo colapso dos sistemas de abastecimento de cidades inseridas na região semi-árida nordestina.

É uma verdade parcial. Na realidade, os sistemas de abastecimento destas cidades entram em colapso por uma ou pelo conjunto das razões seguintes: falta de capacidade de regularização pluri-anual, 100% garantida, dos reservatórios utilizados como fonte de abastecimento; falta de gerenciamento destes reservatórios, usando-os além de suas capacidades de regularização 100% garantida ou, ainda, obsolescência do sistema de abastecimento. Nunca, porém, por falta de água nas respectivas bacias hidrográficas locais. É o que demonstram as respostas das Secretarias Estaduais de Recursos Hídricos, respostas estas contidas no Ofício No 373/MI, datado de 16/09/2005, do Ministério da Integração Nacional dirigido à ANA, no qual estas Secretarias informam as vazões 100% garantidas de reservatórios localizados nas bacias receptoras que poderiam suprir as demandas estimadas para o Ano de 2025, com a segurança requerida, os 12 milhões de habitantes urbanos de cidades inseridas na região semi-árida, inclusive, Fortaleza/Ceará e Campina Grande, na Paraíba. O quadro abaixo sintetiza as informações, contidas no referido Ofício.


Confronto Disponibilidades Atuais X Demandas Humanas Urbanas em 2025

Fonte: Estudos de Inserção Regional, Relatório Geral, Tomo I, Março-2000 e Of. 373/2005-MI.

Deve-se destacar que a demanda para o abastecimento humano atual da região polarizada pela cidade de Campina Grande (são 16 cidades, ao todo), situada no curso médio da bacia do Rio Paraíba, é atendida pelo reservatório denominado Presidente Epitácio Pessoa, popularmente conhecido como Boqueirão. Esta demanda, incluindo as perdas físicas, atinge cerca de 1,10 m³/s para uma vazão regularizada com 100% de garantia, de 1,23 m³/s, havendo, portanto, ainda, um pequeno saldo. Para suprir as demandas futuras, foi construída a barragem de Acauã, situada no curso médio do Rio Paraíba, cujo reservatório regulariza uma vazão de 1,97 m³/s, dados constantes do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado da Paraíba (2006), o PERH-PB. Em relação às demais cidades foi criado, dentro do PERH-PB, um Programa, resultante de uma Conferência de Consenso entre técnicos que lidam com recursos hídricos, funcionários públicos ou pertencentes à iniciativa privada, visando à substituição dos sistemas de abastecimento vulneráveis por outros, totalmente garantidos, a partir de reservatórios dotados destas condições de regularização pluri-anual.

A TRANSPOSIÇÃO E A SECA

Apregoam que os gastos de duas secas correspondem ao custo de execução do projeto, como se, após o mesmo, o problema da seca estivesse solucionado. Recentemente, o Ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, declarou que "tinha a convicção de que ele (o projeto de Transposição) é tecnicamente viável para resolver a questão da seca no Nordeste" (Revista Nordeste No 10, Abril/2007).

A seca, todos sabemos, não atinge somente limites de perímetros urbanos e nem se manifesta, apenas, no colapso de sistemas de abastecimento urbano de cidades inseridas no Semi-Árido nordestino. A seca, muito mais que isso, se manifesta em duas frentes:
· no abastecimento humano, urbano e rural;
· e, principalmente, na produção agrícola, pela quebra da safra devido à ocorrência dos chamados 'veranicos'.

O projeto se propõe solucionar o problema de abastecimento humano urbano, coisa que poderia ser resolvida com os recursos hídricos endógenos das bacias hidrográficas pretensamente receptoras. Mas, não se destina a resolver o problema do suprimento rural, em toda a extensão do semi-árido nordestino. Apenas a população rural no entorno dos canais seria beneficiada. Isto significa dizer que a grande parcela da população rural ficará ao 'Deus dará' das chuvas.

A população humana do meio rural, estimada pelo IBGE para 2005, é de 13.793.526 habitantes para todo o Nordeste, 12.000.000 dos quais estariam no semi-arido.

Nos 4 estados beneficiados pela transposição são 5.286.748 habitantes que, a 50 L/dia, representam uma demanda de 3,06 m³/s.

A demanda da população humana contemplada pelo projeto de transposição é de, apenas, 0,98 m³/s, o que significaria o atendimento de 1.693.142 habitantes que estariam localizados nas proximidades dos canais de transposição (eixos norte e leste). Portanto, 3.593.606 pessoas (68% da população rural dos Estados receptores) estariam excluídas do benefício do abastecimento hídrico. Em relação ao Nordeste, seriam mais de 10.000.00 de excluídos (85,9% da população rural do semi-árido).

Em relação à produção agrícola, o Projeto de Transposição é muito mais ineficiente. A área estimada de cultivo da produção agrícola nos Estados receptores situa-se entre 4 e 5 milhões de hectares, sendo 850.000 ha na Paraíba (já foi superior aos 1.250.000 ha). O projeto considera que os 300.000 ha adjacentes aos 600 km de canais (2,5km em cada margem do canal) são de interesse público, devendo desapropriar esta área para a promoção da reforma agrária e desenvolvimento da agricultura familiar, dos quais 30.000 a 50.000 ha serão destinados à projetos de irrigação de fruticulturas. Gerariam 180.000 empregos diretos e 360.000 indiretos, totalizando 540.000 ocupações trabalhistas.

O projeto não responde a estes e outros questionamentos sociais, correndo o risco de criar novas diferenças de rendas intra-regionais, particularmente, no meio rural, aumentando as diferenças que, teoricamente, pretende diminuir.

Ele tem uma proposta, apenas parcial, dos problemas atuais do semi-árido, faltando uma visão de desenvolvimento socioeconômico de futuro, nos espaços nordestino, estaduais e de bacias hidrográficas que não podem ser planejados de maneira estanque, como é a abordagem desse projeto, voltado, exclusivamente, para a região semi-árida de 4 estados nordestinos. Por conseqüência, desconhece os seguinte fatos e soluções:

· que o abastecimento urbano adequado (disponibilidades 100% garantidas) pode e deve ser feito a partir dos recursos hídricos locais, contidos em reservatórios com capacidade de regularização plurianual;

· que o abastecimento humano rural, poderia ser realizado pela capilarização de adutoras acopladas a chafarizes estrategicamente distribuídos no espaço semi-árido.

O projeto não incorpora o aproveitamento da pequena e média açudagem (estas duas medidas se completam para a solução dos problemas dos efeitos das estiagens, prolongadas ou não, sobre a produção agrícola, desde que sejam executados no espaço e no tempo propícios que é a estação úmida do semi-árido nordestino. Esta deve se fazer de acordo com a sua dimensão, dada por sua capacidade de regularização (vazão 100% garantida) ou, se não a tem, com a capacidade de acumulação, tendo em vista o que determina o artigo 3º, inciso II do Capítulo III da Lei 9.433/97: "a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País". Ora, não reconhecer a disponibilidade hídrica acumulada nos pequenos e médios açudes sem capacidade de regularização é um erro absurdo e não aproveitá-la um desperdício inominável. Eles, os defensores do projeto utilizam o conceito de sinergia como um dos argumentos da transposição. Pois bem, o mesmo conceito de ganho com o uso pode e deve ser aplicado para estes reservatórios menores: o uso será sinérgico se o período de aproveitamento for compatível com a dimensão do reservatório. A vocação do pequeno açude existe (como existe a dos médios e dos recursos hídricos subterrâneos contidos, principalmente, nos aqüíferos aluviais) e não está sendo aplicada: uso na irrigação de salvação, assim entendida aquela que corrige as irregularidades pluviométricas da estação chuvosa (os chamados 'veranicos'), onde todos plantam e a grande maioria perde, ou na irrigação de cultivos de pequeno ciclo, após o período das chuvas, se estas forem regulares como têm sido desde o ano 2.000, ou copiosas como foram em 2000, 2004 e, mesmo, 2006, quando todos os reservatórios pequenos, médios e alguns dos maiores, sangraram.

A SEGURANÇA DA TRANSPOSIÇÃO

Os autores e defensores do Projeto argumentam que ele é seguro porque a sua concepção se baseia na vazão regularizada e 100% garantida pelo reservatório de Sobradinho. Esta vazão é de 1.815 m³/s, segundo técnicos da ANA, Matos, B. A. et al (2004), calculada a partir de uma nova série de dados hidrológicos (1931-2001), para uma vazão média de longo período em Sobradinho de 2.708 m³/s. Vários autores calcularam a vazão de base, componente desta descarga fluvial, a qual se situa em torno de 1.200 m³/s. Os referidos técnicos da ANA calcularam as reservas renováveis do Médio São Francisco (limitado, a jusante, por Sobradinho), as quais seriam de 1.324,5 m³/s, quase da mesma ordem de grandeza da vazão de base. A maior contribuição de água subterrânea a estas reservas e, conseqüentemente, ao escoamento de base vem do aqüífero Urucuia (ver figura a seguir), atingindo os 676,5 m³/s (51% do total).


Este reservatório subterrâneo vem sendo intensivamente explorado para fins de irrigação nas bacias dos rios Grande, Corrente, Urucuia etc. que se constituem nos principais drenos naturais das águas subterrâneas do Urucuia. Esta exploração já vem diminuindo a contribuição do fluxo basal ao escoamento fluvial que chega em Sobradinho e, no futuro próximo, acarretará a redução significativa da vazão de regularização de Sobradinho, com reflexos nefastos na geração de energia e no atendimento de outras demandas, inclusive no projeto de transposição.

José do Patrocínio Tomaz Albuquerque - Hidrogeólogo e Mestre em Engenharia Civil - Área de Recursos Hídricos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
:

Artigos e trabalhos publicados pelo Autor desta palestra correlatos ao tema.

Plano de Aproveitamento integrado dos Recursos Hídricos do Nordeste (PLIRHINE), Relatórios, SUDENE, Recife, 1980.

Projeto ÁRIDAS, Relatório Consolidado, SEPLAN, Brasília, 1994.

Disponibilidade Hídrica, em quantidade e qualidade, demandas e Balanço Hídrico na Bacia do São Francisco. Por: Bolivar A. Matos, José Luiz Gomes Zoby, João Augusto Burnett, Marcelo Pires da Costa e João Gilberto Lotufo Conejo (Técnicos da ANA). VII Simpósio de Recursos Hídricos do Nordeste, São Luiz-MA, 30/11 a 03/12 de 2004.

Disponibilidade Hídrica do Sistema Formado pelos Reservatórios Três Marias e Sobradinho na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco para Fins de Alocação de Água. Por: Marcos Airton de Sousa Freitas & Joaquim Guedes Corrêa Gondim Filho. VII Simpósio de Recursos Hídricos do Nordeste, São Luiz-MA, 30/11 a 03/12 de 2004.

Plano e Gerenciamento dos Recursos Hídricos do Estado da Paraíba, João Pessoa, 1994.

Projeto de Integração de Bacias, Relatório EIA/RIMA.

Programa de Ações Estratégicas para o Gerenciamento Integrado da Bacia do Rio São Francisco e de sua Zona Costeira- Relatório Final, ANA/GEF/PNUMA/OEA

Relatório Final à Comissão Especial Suprapartidária da Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba sobre propostas de desenvolvimento sustentado para o Semi-Árido Paraibano, João Pessoa, 1999.

Vulnerabilidade Climática, Recursos Hídricos e Energia Elétrica no Nordeste Brasileiro - Relatório da Superintendência de Estudos e Informações Hidrológicas da ANEEL, Janeiro / 1999.


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