PRIMEIRO
No princípio era o Rio e o Rio vinha de Deus e sem ele nada vivia.
Quando o Rio descobriu seu curso desenhou suas curvas e saliências assim...
séculos de aprendizagem e constância de águas pela fenda íntima da Canastra Opará.
O Rio nasce mineiro antes das Minas e avança margeando suas próprias margens inventando sua geografia recebendo interferências de pedras, cerros e serras e outros rios mais antigos que ele
Paraopeba, Abaeté, Rio das Velhas, Jequitaí, Paracatu,Rio Corrente, Urucuia, Carinhanha, Verde Grande.
Desvia, engana e rodeia insiste no percurso até se fazer baiano antes da Bahia.
Acumula vestígios debruçando sob seu leito lamas, areias e folhas desesperadas por redemoinhos da passagem.
Firme
o Rio sabe onde quer chegar e empina seu fluxo dobrando a terra com sua língua molhada e lambe miudezas de animais enormes nadadoras escamas luminosas jardins submersos de escuridão e, em sua invenção persistente que não conhece dia ou noite a não ser pelas histórias que ele cospe na beira de fantásticas memórias de Pankararu, Atikum, Kimbiwa, Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare e nomear barcos, canoas, embarcações remos gentis navegam conhecendo a correnteza abrindo sulcos garimpando lendas esculpindo carrancas de renhidos dentes o desconhecido.
O Rio dorme e com ele e nele todos os seres dormem.
As águas têm sono leve os afogados se aquietam e param de gritar os peixes bóiam e a cobra perde seu veneno a mãe d´água aproveita o silêncio para enxugar seus cabelos e os barcos fingem que não existem mais enquanto o Rio dorme.
O Rio míngua finge que se esquece, deixa de correr desbotando toda forma de vida que não o conhecer Convive com todas as desistências de climas e aridez partilha do racasso assíduo da população da beira ribeirinhos,quilombolas resistentes e enfrenta ele mesmo sua imensidão seu medo de morrer e ressurge caudaloso aos poucos tímida altivez que engole águas improváveis novíssimas de afluentes parcimoniosos e generosos de umidade imensa alma do sertão.
"Sabeis assim que sou pobre", "mãe e pai de todo o povo."
O Rio cabeceia e vence rompe em cheia e força e despenca em cachos de espuma pleno imenso glorioso lânguido de indecisão quer ser Pernambuco sem deixar de ser Bahia e arrisca o duplo acostumando suas margens a estar ao mesmo tempo em mais de um lugar.
Tem pressa! Já pressente o mar mas se atrasa em detalhes do contraditório exercitando a aridez com promessas de grão e se deixa ficar em Cabrobó e Petrolina.
... e avança pelo fio tênue que inventou Sergipe e Alagoas antes de existirem e se atira em direção ao mar abandonando sem querer Piranhas e Gararu.Invadindo o mar de igual pra igual adeus! Piaçabuçu.
E morre doce:
cumpriu seu destino inventou a terra e foi morrer no mar.
SEGUNDO
E o Rio se fez beira e habitou entre nós. Um Rio assim tem nome de Santo Francisco de antes, Chico mais conhecido. Leitor assíduo das linhas de Deus e suas criaturas na palma da mão que feito cuia serve água aos bebericos ao Nosso Senhor e todos os jegues de sua infância e todos os jegues de sua paixão. Ensina a nadar os peixes e a multiplicá-los pelas mãos de milagreiros pescadores e fêmeos milagres de acabar com a fome. E quando visita a roça engravida a mandioca de perdão, grão e farinha Santa Eucaristia. E conhece o corpo banha suas dores cura nos aflitos a sofreguidão. Quando o céu se abre batiza os mais pequeninos. Eis! meu Rio amado em suas águas há profecia, evangelho e sabedoria de arrastar demônios e curar o mundo. Paira sob suas águas o Divino Espírito Santo. Recebe os tecidos de lázaros vestidos da morte de todo dia que trazem as santas mulheres que descem na beira do Rio para a Transfiguração Boa Hora da Lavação. Esfregam pecado e ira ensaboam sangue e suor e trazem de novo à vida panos, roupas e seus viventes quarados no sol do agreste e acenam com louvor ao Rio varais de Ressurreição. E quando chega sua hora da morte e da traição puído de sobra e lucro, desmatamento e queimada, desmando e poluição, carrega os pecados do mundo, esgoto e mineração, projetos mirabolantes de cercas de irrigação e insiste em ser bacia dos pobres: de joelhos toma os pés do mundo e se entorna em aguapés. De tortura em tortura abrem em seu corpo as chagas com obras e ambição e crucificam o Velho Chico na cruz da Transposição. E o céu rasga o véu da verdade sísmicos abalos dos fatos do que diziam os profetas, ecologistas e poetas, geógrafos e adivinhas: Não se mexe no curso de um Rio que junta terra e céu, bicho e povo, o que foi e o que pode ser numa rede fina de vida. Esta é a hora! Esperamos ativamente a Páscoa de ressurreição e ver de novo o Velho Chico "bater no meio do mar dormir ao som do chocalho e acordar com a passarada sem rádio, sem notícia das terras civilizadas."
Nancy Cardoso Pereira * Pastora metodista e membro da CPT.
Nenhum comentário:
Postar um comentário