terça-feira, 12 de agosto de 2008

A impossível comensalidade depois de Doha


Estou enviando artigo sobre os impasses para comensalidade humana depois do fracaso da Rodada de Doha.
Um abraço,
Leonardo Boff
Teólogo.

A impossível comensalidade depois de Doha

O vergonhoso fracasso da Rodada de Doha se deve principalmente aos países ricos que quiseram garantir a parte leonina nos mercados dos pobres. Num quadro de fome já instalada, se desperdiçou a opotunidade de assegurar comida na mesa dos famintos. O sonho ancestral da comensalidade que nos faz humanos, quando todos poderiam sentar-se à mesa para comer e comungar, se torna ainda mais distante. Além da crise alimentar, nos assolam ainda a crise energética e a climática. Se não houverem políticas mundiais articuladas podemos enfrentar graves riscos às populações e ao equilíbrio do planeta. Dai A Carta da Terra propor uma aliança de cuidado universal entre todos os humanos e para com a Terra até como questão de sobrevivência coletiva.
Os problemas são todos interdependentes. Por isso não é possível uma solução isolada com meros recursos técnicos, políticos ou comerciais. Precisa-se de uma coalizão de mentes e coração novos, imbuídos de responsabilidade universal, com valores e princípios de ação, imprescindíveis para uma outra ordem mundial. Enumeremos alguns deles:

O primeiro de todos reside no cuidado pela herança que recebemos do imenso processo da evolução do universo.

O segundo está no respeito e na reverência face à toda alteridade, a cada ser da natureza e às diferentes culturas.

O terceiro encontra-se da cooperação permanente de todos com todos porque somos todos eco-interdependentes a ponto de termos um destino comum.

O quarto é a justiça societária que equaliza as diferenças, diminui as hierarquizações e impede que se transformem em desigualdades.

O quinto é a solidariedade e a compaixão ilimitada para com todos os seres que sofrem, a começar pela própria Terra que está crucificada e pelos mais vulneráveis e fracos.

O sexto reside na responsabilidade universal pelo futuro da vida, dos ecosistemas que garantem a sobrevivência humana, enfim, do próprio planeta Terra.

O sétimo é a justa medida em todas as iniciativas que concernem a todos já que viemos de uma experiência cultural marcada pelo excesso e pelas desigualdades.

Por fim é a auto-contenção de nossa voracidade de acumular e consumir para que todos possam ter o suficiente e o decente e sentir-se membros da única família humana.
Tudo isso só é possível se junto com a razão instrumental resgatarmos a razão sensível e cordial.
A economia não pode se independizar da sociedade pois a consequência será a destruição da idéia mesma de sociedade e de bem comum. O ideal a ser buscado é uma economia do suficiente para toda a comunidade de vida.
A política não pode se restringir a ordenar os interesses nacionais mas se obriga a projetar uma governança global para atender equitativamente os interesses coletivos.
A espiritualidade precisa ser cósmica que nos permita “viver com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade face ao lugar que o ser humano ocupa na natueza”(Carta da Terra, introdução).
O desafio que se impõe parece ser este: passar de uma sociedade de produção industrial em guerra com a natureza para uma sociedade de promoção de toda a vida em sintonia com os ciclos da natureza e com sentido de equidade.
Estas são as pré-condições de ordem ética e de natureza prática que se destinam a criar as condições de uma comensalidade possível entre os humanos. Logicamente, se fazem necessárias as mediações técnicas, políticas e culturais para viabilizar este propósito. Mas elas dificilmente serão eficazes se não forem plasmadas à luz destes princípios-guias que significam valores e inspirações.

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