terça-feira, 22 de julho de 2008

As casas se abrem para o exército da água


Jornal valor econômico - 5 de maio 2008

As casas se abrem para o exército da água

Carolina Mandl

Três meses atrás, Waleska Saraiva saiu de casa só com a mala de roupa na mão. Deixou para trás móveis, churrasqueira e jardim para morar com a sogra em um modesto apartamento. Ela não foi a única em Cabrobó. Carlos, João, Rosa e mais outros tantos habitantes estão renunciando a confortáveis moradias para viver em lugares mais simples, ou com parentes.

Não se trata de uma crise que assola a pequena cidade do sertão pernambucano. Muito pelo contrário. Waleska e seus conterrâneos entraram em um lucrativo negócio. Saíram de suas casas para alugá-las a preços atrativos a engenheiros e administradores que tocam as obras de transposição do rio São Francisco na cidade, vindos de diversos outros cantos do país.

"Eles chegaram aqui querendo morar em condições iguais ou melhores do que as que tinham nas cidades onde viviam. Mas não havia casa sobrando", explica Waleska, dona de uma loja de material de construção e de uma butique. A infalível lei da oferta e da procura entrou em cena. A casa de três suítes e um quarto de Waleska, que antes com muito esforço renderia um aluguel mensal de R$ 1 mil, está alugada por R$ 1,4 mil. Enquanto isso, ela e o marido moram com a sogra. O bom negócio levou outros cabroboenses a sairem de suas casas para alugá-las.

O fenômeno imobiliário se repetiu em Floresta, uma pequena casa dentro de uma vila agrícola que um ano atrás era alugada por R$ 35 hoje vale R$ 250. Lá, as pessoas abrem mão de suas moradias para se instalar em edículas, dentro de lotes de terra onde cultivam coco e melão. Suas antigas residências se transformam em enfermaria, cozinha, dormitórios e laboratórios de testes do Exército.

Ainda nos primeiros metros de um total de 800 km Nordeste adentro, a obra de transposição do rio São Francisco está numa etapa distante de cumprir a promessa do governo de levar água a 12 milhões de pessoas. Tampouco teve tempo de se provar desnecessária, estar a serviço de latinfundiários ou ser destruidora do Velho Chico, como apregoam seus opositores.

Por enquanto, os efeitos desse controverso projeto nada têm a ver com água. Estão mais ligados ao dia-a-dia das cidades de Cabrobó e Floresta, de onde partem os dois eixos da transposição, o Norte e o Leste. São negócios inusitados que surgem, como a troca de casas, além de alterações na rotina.

Separadas por 100 km da BR-428, em meio ao Polígono da Maconha, Cabrobó e Floresta têm muito em comum: ambas têm cerca de 30 mil habitantes, renda per capita mensal em torno de R$ 190 e a maior parte da população dedicada à agricultura. Até pouquíssimo tempo atrás, também foram palco de sangrentas brigas de família - Araquan/Gonçalves contra Cláudio/Russo, em Cabrobó, e Ferraz contra Novaes, em Floresta.

Agora, os dois municípios recebem batalhões de engenharia do Exército, vindos do Piauí e da Paraíba, além de empresas de construção civil do Rio de Janeiro e de São Paulo, que trazem novos costumes e hábitos de consumo.

Em Cabrobó, 250 integrantes do Exército chegaram em meados de 2007 e se instalaram em um alojamento improvisado num antigo posto de gasolina. Depois, foram os 60 funcionários do consórcio Águas do São Francisco, que ganhou a licitação para fazer os lotes 1 e 2 da transposição. Segundo estimativas das empresas Carioca, Paulista e Serveng, que formam o consórcio, o número de empregados deve chegar a 400 pessoas.

Mesmo antes da chegada da equipe completa as mudanças são sensíveis na cidade sertaneja. Da lista de pedidos do supermercado Pague Menos, por exemplo, já passaram a fazer parte itens, nas palavras do gerente-geral Eronildo de Araújo, mais sofisticados: uísques Johnnie Walker 12 anos e Ballantine´s.

O crescimento das vendas também animou a rede de três supermercados a dobrar o tamanho de uma das lojas. No primeiro trimestre deste ano, o aumento do faturamento foi de 20% em relação a igual período do ano passado, e a expectativa é de encerrar o ano com um incremento de 40%. "Vendemos mais comida porque tem mais gente na cidade e mais pessoas empregadas", explica Araújo.

O prefeito de Cabrobó, Eudes Caldas (PTB), não sabe dizer quantas vagas de trabalho foram criadas na cidade desde o início das obras da transposição. Diz, entretanto, que diversas redes varejistas de móveis, roupas e eletrodomésticos, interessadas no crescimento populacional do município, já ligaram procurando áreas para se instalar.

Além de trazer um novo fôlego ao comércio, a chegada dos engenheiros, pedreiros e administradores fez surgirem novas demandas à prefeitura, como educação e saúde. Com receita anual de R$ 25 milhões, Eudes, que tenta a reeleição, não sabe como vai resolver a questão. "O município não tem condições de bancar", diz.

É um tipo de problema que ainda não surgiu em Floresta. Isso porque apenas o Exército chegou à cidade até agora. São 228 homens e duas mulheres que vieram sozinhos, sem suas famílias, e se instalaram no alojamento militar, com seus próprios médicos e dentistas. A Camargo Corrêa, que venceu a licitação para a construção do lote 9, ainda não instalou sua equipe.

Como abrigo, os militares escolheram em junho do ano passado uma antiga vila agrícola com 48 casas, que fica a 30 km de Floresta. Até agora, 12 delas foram alugadas e pintadas de azul, para identificar mais facilmente quais pertencem ao Exército. Alguns contêineres vieram do Haiti para se transformar em dormitórios.

"Usar a vila foi a forma que eu encontrei de tornar a estadia do Exército aqui mais econômica", diz Vanilson Gurgel, tenente-coronel do 3° Batalhão de Engenharia de Construção do Exército. É ele quem comanda os 230 militares envolvidos na obra.

Muitos proprietários das casas já tinham saído da vila por dois motivos: a falta de segurança no Polígono da Maconha e a pobreza, com o baixo rendimento agrícola. Mas a chegada do Exército parece ter estancado a migração.

"Eu queria ir embora porque até assassinato já vi aqui, mas agora vou ficar enquanto os militares estiverem", diz Marizete Isidoro. Além de se sentir mais segura, ela arrumou uma atividade para complementar a renda vinda da roça lavando as roupas dos militares, por R$ 0,75 a peça. Duas concorrentes cobram R$ 0,50, mas ela se defende. "Só uso produtos de qualidade porque preciso agregar valor", diz, em um vocabulário de quem tem tino de empresária. A demanda continua crescente, o que faz com que a receita das roupas seja igual à da roça: R$ 200 por mês. Com os R$ 400 mais R$ 94 do Bolsa-Família, Marizete mantém a casa com cinco pessoas.

Eliane Lisboa anteviu que os militares logo enjoariam de comer três vezes ao dia no refeitório do Exército. Fazia pastéis e saia de bicicleta vendendo-os por R$ 1, acompanhados por um copo de refrigerante. Agora, esse é o preço só do pastel. E os compradores que venham à sua casa, agora reformada e transformada numa lanchonete que vende 40 pastéis por dia. Em breve, ela servirá refeições.

Nenhum comentário: