sexta-feira, 13 de julho de 2007

Transposição do São Francisco: Reféns do equívoco


Os empresários do grande capital, principalmente, serão contemplados com as águas do rio, enquanto as populações difusas, geradoras de votos e as mais carentes em termos hídricos, aquelas que atualmente são abastecidas por frotas de caminhões pipa, continuarão desassistidas

Por João Suassuna*

Recife - Que a transposição do Rio São Francisco é um projeto polêmico, isso todos nós já sabemos. Mas não só polêmico: não temos a menor dúvida em afirmar a existência de falhas técnicas significativas no mesmo, as quais poderão resultar em graves conseqüências para o ambiente natural nordestino.

Vale mencionar, entre outras, a possibilidade real e concreta de interferência nas populações indígenas; o aumento e aparecimento de novas doenças, visto ser a água um excelente veículo condutor; a perda de terras potencialmente agricultáveis; a desapropriações e todos os conflitos que delas decorrem; a especulação imobiliária nas várzeas potencialmente irrigáveis no entorno dos canais; o incentivo à indústria da seca, através da perpetuação do desabastecimento das populações difusas; a interferência no patrimônio cultural das populações atingidas; a perda e fragmentação de áreas com vegetação nativa (de habitat e ecossistemas); a modificação da composição e o risco de redução da biodiversidade das comunidades biológicas aquáticas nativas das bacias receptoras; o risco de introdução de espécies invasoras; maior número de ocorrência de acidentes com animais peçonhentos; a aceleração do processo erosivo e de carreamento de sedimentos; a modificação no regime fluvial do rio; as perdas na geração de energia elétrica; a eutrofização dos novos reservatórios e, sobretudo, ao prejuízos ao mais vital dos recursos da natureza: a água.

Os últimos acontecimentos relativos ao início das obras da transposição em Cabrobó (PE) têm-nos preocupado sobremaneira, a ponto de conclamarmos o bom senso das partes envolvidas, principalmente do lado das autoridades responsáveis pelo projeto. O diálogo, no nosso modo de entender, é a principal saída para a solução dos impasses ali existentes.

Na nossa militância decana sobre a realidade nordestina, temos revelado a existência de alternativas mais apropriadas e mais baratas para o abastecimento da população, quando comparadas àquela do projeto da transposição. Nos referimos Atlas Nordeste de abastecimento urbano de água, editado pela Agência Nacional de Águas (ANA), em dezembro de 2006, bem como aos trabalhos de convivência com o Semi-Árido sob a responsabilidade da Asa-Brasil (Articulação do Semi-Árido brasileiro).

Para se ter uma idéia da importância delas, o Atlas Nordeste, que traça também um diagnóstico da situação hídrica da região, traz como pressuposto a perspectiva do abastecimento de um número três vezes maior de pessoas no Nordeste, quando comparado aos beneficiários do projeto da transposição, valendo-se, para tanto, da metade dos recursos previstos naquele projeto. Com a divulgação desse trabalho pela ANA, acreditamos que o governo federal passou à categoria de maior opositor do projeto de transposição das águas do rio São Francisco, não tendo sentido, portanto, a sua priorização no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Em relação aos trabalhos da ASA-Brasil, voltados para a questão da água, essa instituição propõe a captação da chuva para consumo humano e para produção de alimentos, por meio de um leque de 40 tecnologias, a exemplo das cisternas, barreiros e mandalas. Portanto, o foco dos movimentos sociais é no sentido do abastecimento humano, compreendendo a água como um direito humano fundamental.

Costumeiramente, nos reportamos, em nossos trabalhos, ao uso das cisternas rurais, como uma das melhores alternativas para o abastecimento das populações difusas da região semi-árida nordestina. Uma cisterna de 16 mil litros, por exemplo, tem capacidade para ofertar, a uma família de 5 pessoas, durante os 8 meses sem chuvas na região, água de boa qualidade para beber e cozinhar.

Entretanto, caso o governo federal venha iniciar o projeto da forma como está conduzindo as negociações, certamente estará cometendo um grande equívoco, o que, na realidade, será uma lástima. Aliás, já tivemos a oportunidade de comentar essas questões no artigo "Na iminência do primeiro equívoco", escrito em 2003.

Lamentamos, no entanto, a ótima oportunidade desperdiçada de se negociar essas questões do Nordeste Semi-Árido junto ao governo federal. Após o Santo jejum do bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, o governo havia iniciado um processo de negociação junto aos movimentos sociais, fato interrompido pela proximidade do período eleitoral do ano passado e pela cassação da liminar que impedia o início das obras transpositórias. Imaginávamos, no entanto, que uma vez encerradas as disputas eleitorais, o governo voltasse à mesa de negociações. Ledo engano. O que se viu foi um governo livre de empecilhos e motivado à imposição do projeto goela abaixo do nordestino, pondo por terra todas as possibilidades de saídas dignas de seu convívio com as secas que freqüentemente assolam a região.

Outra questão que tem-nos preocupado sobremaneira diz respeito à divisão do Nordeste causada, principalmente, pela disputa das águas do Velho Chico.

Consta no projeto apenas o benefício dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, o que praticamente ocasionou o desmembramento do Nordeste em duas partes: a região setentrional (aquela que irá receber as águas do São Francisco) e a região meridional (aquela que irá exportar as águas do rio). Esse fato não foi bem recebido pela população da sua parte meridional, tendo em vista ficar a região como mera exportadora de água, sem que seus habitantes tivessem participação efetiva no projeto. Isso gerou descontentamentos, o que julgamos indesejável, principalmente tendo em vista ser o São Francisco o rio da integração nacional, não devendo, portanto, servir de motivos para discórdias entre o povo nordestino. O Nordeste deveria ser considerado de uma forma global, com seus estados participando tanto das discussões como das soluções de seus problemas.

Essa questão da divisão do Nordeste ficou evidenciada recentemente em reunião realizada no Recife, na qual participaram os governadores dos estados da região setentrional, para discussão do apoio ao início das obras do projeto de transposição. A reunião foi importante porque evidenciou, de um lado, o poder de articulação dos atuais dirigentes daqueles estados, mas, de outro, deixou a desejar, pelo simples fato de não se ter dado enfoque às principais questões regionais, notadamente o abastecimento das populações difusas circunscritas no Polígono das Secas. Nesse sentido, a reunião poderia ter sido muito mais proveitosa, se realizada com a participação dos governantes de todos os estados nordestinos que sofrem a influência do fenômeno das secas, inclusive o do estado de Minas Gerais, principal exportador das águas do Velho Chico, tendo como pauta principal a discussão das propostas existentes no Atlas Nordeste do abastecimento urbano de água e a sua importância para a solução definitiva dos problemas de abastecimento de todo o Nordeste.

Para se ter idéia da importância dessas propostas, existe no Atlas da ANA a indicação de solução para os problemas de escassez hídrica na região agreste do estado de Pernambuco, através da adução (uso de tubulações) das águas do rio São Francisco. Por que não implementar essa proposta, ao invés de se começar a construir o faraônico eixo norte, em Cabrobó, cujos benefícios passarão à margem do estado? A primeira alternativa seria a mais sensata.

O foco do eixo norte é puramente econômico. Isso todos nós sabemos. Visa tão somente o benefício do agronegócio nos estados do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, numa prova de total desrespeito ao que foi deliberado pelo comitê da bacia do São Francisco, no plano decenal de uso de suas águas. Segundo consta neste plano, o uso das águas do rio, fora de sua bacia hidrográfica, é permitido apenas para abastecimento humano e animal, isso em caso de comprovada escassez.

Caso seja iniciado o projeto, entendemos que os governadores dos estados do Nordeste setentrional ficarão reféns das conseqüências desse equívoco. Os empresários do grande capital, principalmente irrigantes, industriais e carcinicultores, serão contemplados com as águas do rio, enquanto as populações difusas, geradoras de votos e as mais carentes em termos hídricos, aquelas que atualmente são abastecidas por frotas de caminhões pipa, ao perceberem que o projeto é revestido de pura ilusão, ficarão revoltadas, o que poderá resultar em desgastes políticos de conseqüências imprevisíveis.

Diante de tudo isso, cremos que ainda há tempo para se refletir sobre essas questões, envidar esforços para o retorno das negociações interrompidas e torcer para que o bom senso prevaleça na volta desse diálogo. É o que desejamos para o bem comum.

*João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

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